quarta-feira, 8 de julho de 2015

A caminho de Cacilhas... (parte I)

Como poderei jamais descrever a misteriosa doçura desses olhos que me seguiam no caminho de Cacilhas, — desses olhos de mulher, que ao mesmo tempo provocavam e desfaleciam, castanhos e reluzentes detrás da franja móvel das suas longas pestanas pretas? Como descrever o charme que tombava, neste dia de outubro quente e dourado, sobre este caminho onde eu subia solitário para uma cidadela situada no alto, afim de aí apreciar uma vista única sobre o Tejo e sobre Lisboa?

Rua do Castelo, Entrada do Jardim, Almada, ed. desc., década de 1900
Imagem: Fundação Portimagem

A senhora Amélia de Deus, da balustrada do seu terraço, explorava a estrada coberta de poeira amarela, onde entre os altos muros, no silêncio, os meus passos subiam. Ela aborrecia-se, e é por isso que era curiosa.

Quando passei, imediatamente a magia eterna do desejo amarra o seu olhar ardente à minha contente surpresa. Inconsciente, transportei-o ao fundo de mim, — seus olhos que queimavam a tez pálida, seus lábios escuros, pesados, e no seu corpete rosa, florido sobre a cabeceira das pedras, seu peito violento, soberbo...

No cimo, o íngreme bruscamente parou e abriu o encantamento do céu imenso e da água azul. Da porta desta fortaleza — uma pequena fortaleza não muito severa guardada por um soldado não muito mau — o panorama do mar da palha desenrolava-se incomparável. Sentei-me ao pé dos altos muros militares, deixando-me afundar pouco a pouco no azul límpido, no azul sonhado, imóvel e lendário, que fundia o firmamento na água.

Panorama de Lisboa, ed. A. Myre (detalhe), c. 1900.
Imagem: Delcampe

Sem uma ruga, o Tejo, nessa baía que ele descreve a par de Lisboa, dormia sob o fino céu. Sobre ele uma "écharpe" com estrias lumimosas flutuava docemente, e nos seus vincos caíam cintilas de sol, carícias de azul. Mecanicamente, eu olhava o triângulo de velas brancas e a sua silhueta derramada que tremia demoradamente na água. 

Uma embriaguez de silêncio e luz entorpecia-me assim como esses barcos distantes que pareciam ancorados para sempre na serenidade... Hora esquisita afundada fora da realidade no sonho mais amável! E não sei a quem devo, este momento extraordinário, ao profundo encantamento da paisagem ou ao olhar divino da senhora que atravessava algumas tênebras inconfessadas do meu ser.

Contornando o flanco esquerdo da cidadela, cheguei a um terraço que dominava a pique uma centena de metros de rochedo, abaixo dos quais se encontrava o rio. Aí, foi uma maravilha renovada para o olhar que podeia abraçar ao mesmo tempo a cidade de Lisboa agrupada sobre as suas colinas e o Tejo alargado confundindo-se com o mar, e toda a luz do poente que invadia a foz. 

Abaixo, baixas e revestidas de videiras, as casas alinham-se ao longo da água. O seu vozeiral sobe na solidão do rochedo, e é a vida que vem perturbar a poesia luminosa de paz. Da cidade também, acima do rio, acorre o ruído — o apito de vapor, o tumulto dos cais, o gemido surdo de mil trabalhos dispersos. Inútil, triste barulho àquela hora, quando a sombra se inclina, ou o espelho infinito do mar se alonga em mil facetas, onde o sol parte num fluxo de ouro que derrama sobre a água em deboche real...

Les vignobles des bords du Tage, foto Paul Witte, Munich, Grande géographie Bong illustrée, c. 1911.
Imagem: Delcampe

Ao descer do alto, um tanto apressado, — o barco para Lisboa apitou no pontão — no seu terraço, revi a senhora Amélia que, com o mesmo olhar apaixonado, olhava o tombar do dia no seu sonho perturbador. E não sei porquê, ao passar, como se já nos conhecêssemos, cumprimentei-a.

Ela tinha uma muito simples alma de criança. E a sua vida também era a coisa menos complicada do mundo. Ela punha-se irrefletidamente à janela, aquecendo-se ao sol, conversando com Quitéria, sua velha criada, ou com as vizinhas, por muito tempo, incansavelmente​​, coisas muito triviais. Ela saía pouco, mas, atrás das persianas baixas ou no terraço, nunca deixava de participar na vida de fora. 

Ela tocava música, bebia chocolate, arejava, vagava sem rumo pelas salas frias de sua casa. Então, complacentemente, deixava cair num espelho o seu olhar estranho, doce e selvagem, onde estavam as recordações da antiga Lusitânia. E para a noite, na fadiga de sua longa preguiça fadiga ou numa obsessão da sua solidão, esticava-se como uma fera selvagem abandonando-se aos desejos ferozes de volúpia ardente que carregavam através das suas veias algumas últimas gotas de sangue mouro.

La maja vestida, Francisco Goya, 1803.
Imagem: Wikipedia

Que fascínio soberano exercia ela sobre mim, e para obedecer a qual império regressei no dia seguinte a Cacilhas? Seu olhar tinha sobrecarregado o meu sangue de uma febre inconcebível. Eu carregava o seu peso como a impressão de uma queimadura. E isso, para mim, era uma fraqueza culpada, pois apenas tinha esquecido o desgosto de uma separação recente, e prometido a uma mulher, bem amada, de não mais viver, a partir de então, que do sentimento que trazia [continua...]. (1)

(1) Vignemal, Henri, Sur le chemin de Cacilhas, L'Instantané, Supplément Illustré de la Revue Hebdomadaire, 1901

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