UM dia de dezembro, um soberbo dia de dezembro no nosso paiz é, para mim, o ideal da belleza diurna de todas as quadras do anno.
Não tem os relvões esmaltados, pomares floridos, searas ondeantes, gorgear de ninhos como na primavera; nem os vinhedos colmados de cachos, o trigo loiro, sombras remorosas de arvores de fructos opimos como o verão e o outono.
Mas tem o pungir virginal da esperança nas folhas das terras lavradias, os cristaes serpentinos dos córregos e algares, as veias prateadas dos ribeiros e as calhandras aos paires pelos ares.
Vem abrindo a manhã; é rápido o crepúsculo; o norte brando e límpido menea a coma flexivel dos pinheiros bravos; o azul do ceu carregado como o dos Apeninos, o sol, incendiado, resae da orla do nascente, os diamantes da geada á fíor da terra, e na rede das arvores desfolhadas. Na esphera immaculada, no ar luminoso e vivificador a suprema formosura, annunciando, no poder latente da natureza, os dias prósperos do futuro.
Foi n'uma d'essas madrugadas inolvidáveis de dezembro, em 1877, que eu sahi a bater os montados da Rosa e da Oliva. Na volta á Trafaria, encontrei de improviso Júlio Mardel. Vi nha com um rapaz que eu conhecia — Lúcio do Sacramento — regente agrícola, protegido de Simões Margiochi.
*
Duas palavras sobre Júlio Mardel.
Conheci-o no berço. Não ha ninguém de certa roda e certa edade, que o não conheça e o não aprecie no muito que vale. O que nem todos podem calcular é o que elle foi em pequeno. Não conheci na minha longa vida criança egual.
Tinha conceitos, replicas brilhantes — algumas já correm impressas. Quando convinha, guardava a compostura de um homem feito. Era tal a vivacidade, o talento a borbotões, que sahia d'aquelle cérebro infantil, que in fundia mais do que espanto; quasi medo!
A precocidade assombrosa, reunia a simplesa e as graças da puerícia. Um dia, teria elle dez annos, levei-o a jantar a casa de Rebello da Silva. Vinha galantíssimo; todo de veludo preto, e trajando com o bom gosto peculiar n'aquella excepcional familia.
Por essa época, o eminente escriptor e orador recebia ás quintas, e domingos, a jantar, os seus íntimos: Rodrigo Felner, A. Xavier Rodrigues Cordeiro, Francisco Maria Bordallo, António Pedro Lopes de Mendonça.
Alexandre Herculano nas quintas era quasi sempre certo. N'esse tempo morava Rebello na rua de S. Bento, próximo á travessa de Santo Amaro. Ao lado vivia Latino Coelho, e em frente João de Andrade Corvo.
Corvo, também não raro, vinha jantar; Latino, abstemio como um anachoreta, apenas apparecia ás noites.
Com taes convivas, pôde calcular-se como corria o tempo, e talvez devesse tomar-se como leviandade minha levar um pequeno, que mal teria dez annos, a passar largas horas com homens d'aquelles. Pois encantou e maravilhou a todos.
Pena foi, di-lo-ei, pena foi, que apesar do que vale, Júlio Mardel não hou vesse desenvolvido mais profusamente, n'um estudo methodico e aturado, as poderosas faculdades do seu engenho nativo.
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A canoa, que havia de transportar-nos a Lisboa, era tripulada por três rapazes braceiros e pelo velho mestre Casaca já entrado em annos, porém robusto ainda. Os meus companheiros de viagem: Júlio, Lúcio e meu afilhado António Tovas.
Quatro remeiros para atravessar o Tejo em noite plenamente calma e n'um dos pontos mais estreitos do rio, talvez pareçam de sobra. E que as aguas do monte vinham de tal modo arrebatadas que próximo á barra eram doces.
As chuvas do outono haviam sido caudaes.
Júlio Mardel, ao pôr os pés no barco, invocou o grande épico, exclamando:
"Oh! mal haja o primeiro que no mundo
Nas ondas vela poz um secco lenho!" [Camões, Luis de, Os Lusíadas, Canto IV, Estância 152]
E commentou o texto, declarando que não havia homem em todo o universo mais poltrão do que elle no mar.
Vendo, porém, a tranquilidade da noite, continuou dando largas á veia inexgotavel da sua faiscante palavra.
Mettemos ao rez do Almarás, montes que vão da Trafaria ao Pontal de Cacilhas.
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A tarde findava. A lua, em fogo, como o sol posto, levantava-se do nascente.
Momento que raras vezes, sob um céu diaphano e luminoso, logram apanhar os que adoram os painéis inimitáveis da natureza no incomparável rio do nosso paiz.
Como descrever os tons das aguas, dos horisontes, onde a mancha de rubim vae cambiando na violeta da amethysta; os picos de Cintra, como ondulando, a desapparecer na penumbra do occidente, a cidade a envolver-se no veu da neblina crepuscular!
Não ha tintas, nem linhas, nem arte de génio humano que possam reproduzir com o pincel, com a palavra, com todo o vago e intenso das próprias partituras, a maravilha arrebatadora!
A alma do admirador enternece-se, extasia-se, abysma-se na contemplação momentânea do indisivel quadro!
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Tinhamos embarcado havia largo espaço. Nos vãos, recôncavos, grutas e largas fendas d'aquelles rochedos, o ímpeto da corrente dava uns rugidos surdos e sinistros, contrastando singularmente com a funda e majestosa serenidade da noite.
Júlio Mardel emmudeceu. Os remadores, arrancando com alma, procuravam chegar a uma altura que lhes permittisse descair no caes de Belém.
Ao cabo de mais uma hora, supondo momento propicio, tentaram a travessia. A poucas remadas entravamos no fio da corrente.
O barco a descair a olhos vistos. Os homens redobrando na faina, Mar estanhado, porém a ondulação, que vinha do largo, augmentava.
Ouvia-se já distinctamenteo som pesado da vaga nos cachopos da barra:
"Como o confuso bramar
D'um mar ao longe movido.
Que á praia vem rebentar" [Garrett, Almeida, Folhas Caídas]
Ninguém proferia palavra.
N'isto, um dos remeiros d'estibordo levou a mão á cabeça, e tirando o barrete disse, suffocado de afflicção:
— Nossa Senhora do Cabo!
Os outros responderam sombriamente:
— Nossa Senhora do Cabo!
O mais leve esmorecimento era a perdição. Se o barco desse a popa á corrente, em poucos minutos estávamos todos perdidos.
Então, com a energia dos momentos supremos, acudi aos dois canos da minha espingarda.
A disciplina restabeleceu-se.
O pânico passou.
Os rapazes, resolutos e vigorosos, arrependidos e envergonhados d'um momento de fraqueza, com a alma de marítimos portuguezes, atiraram-se ao punho dos remos de voga arrancada, e, soando em grossas bagas, lograram tomar a revessa, e deitaram-nos adiante do Dá Fundo.
Quando saltámos em terra, os calhaus da praia pareceram-nos tapis da Pérsia.
As estrellas no ceu profundo, desvanecidas com o luar esplendido; na superfície espelhada do Tejo e, barra-fóra, a tremulina.
Encanto ethéreo de noite e de mar!
O mar, porém, embora manso como cordeiro, é sempre pérfido e tigrino.
*
Mettemos caminho de Belém.
Os Jerónimos inundados de luz nas linhas altivas e elegantes. Nós, perdido o senso esthetico, não tinhamos olhos senão para ver se estava allumiada ainda a casa de pasto do Caçador d'El-rei, João Lourenço, por antonomásia — o João da Burra.
Estava e tinha a canja de gallinha, a sua cosinha á portugueza e o trato fino e polido da sua pessoa opulenta de formas e sympathica. Também se foi na força da vida.
Eu não lamento a solidão dos velhos. Os velhos sempre teem alguns vivos, e sempre uma legião de mortos!
Dos meus companheiros d'aquella notável travessia. Lúcio do Sacramento sucumbiu ha muito. Júlio Mardel, e meu afilhado António Maria Tovas, estão vivos, e Deus os conserve!
Monte de Caparica, Torre. Outubro, 25 — 1906 (1)
(1) Bulhão Pato, Raimundo António de, Uma arribada em calma branca
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