quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Almada, O Panorama, 1841

A Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis foi criada em Fevereiro de 1837, sob os auspícios da rainha D. Maria II.

Lisbonne vue du vieux port, François d'Orléans, prince de Joinville, 1842.
Imagem: LMT no Facebook

O lançamento de uma publicação semanal, propagadora de conhecimentos uteis, terá mesmo sido o objetivo que despoletou [espoletou] a constituição da Sociedade, conforme faz noticia o Diário do Governo, de 21 de Fevereiro de 1837:

"O louvável fim da Associação, que se propõe publicar este periódico [O Panorama], compreende-se em poucas palavras: ensinar o Povo, para que elle seja menos acelerado ou menos violento em suas opiniões e oferecer-lhe a instrução por modo que ella possa chegar ao seu intendimento [sic] e a sua bolsa; isto é, fácil e barata." (1)

Vista de parte de Lisboa tomada do alto d'Almada, 1841.
Imagem: Hemeroteca Digital

Quantas vezes fallar-mos de Lisboa, hade ser com elogios! — Dirá alguem, que não viu esta formosa capital, que o amor nacional nos faz exagerados — mas, para testemunhas não equivocas da verdade, ahi estão esses escriptores estrangeiros, apaixonados por suas terras e orgulhosos como eram , que pondo mil defeitos no pobre Portugal, não podaram resistir á convicção, e descreveram Lisboa, por sua posição e porto, como a rainha entre as cidades da Europa, que gozam a preeminencia de cabeças de seus respectivos estados.

Panorama de Lisboa, Edward Gennys Fanshawe, 1856.
Imagem: Royal Museums Greenwich

Link [Heinrich Friedrich], com a sua má lingua, que entretido a colher plantas, olhava pouco para os costumes da nação e por isso mentiu tão superficial e descaradamente; o inglez Murphy [James Cavanah], pessoa de rasão mais imparcial, todo embevecido em obras d'arte, por sua profissão d'architecto; Châtelet [Louis Marie Florent Du,], Kinsey [Rev. William Morgan,] e outros confessaram quanto era bella e magestosa a séde da monarchia portugueza.

Belem Castle, Rev. William Morgan Kinsey, Portugal Illustrated in a series of letters, 1827.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Das eminencias, que a circumdam, são deleitosas e variadas as vistas que offerece ao espectador; transportai-vos porem á margem meridional do Tejo, e dos outeiros, que a guarnecem , olhai para a nossa cidade, e desfructareis novas e interessantes perspectivas.

A predilecção que os habitantes de Lisboa manifestam pelos passeios á outra-banda, talvez se fundamente no regozijo que infunde n'alma o delicioso aspecto da nobre povoação, onde por horas deixaram seus lares domesticos.

Em alto fragoso está assentada a villa de Almada; podemos dizer que a edificaram em cima d'um penedo. Como sentinella avançada olha respeitosa e vigilante para a sua capital, que na margem do norte se dilata com belleza e magestade.

Lisbonne , vue du fort d'Almeida [sic] .  
Hugo, Abel, France militaire, Histoire des armées françaises de terre et de mer, de 1792 à 1837, Paris, Delloye, 1838, 5 vols.

Ao redor d'Almada ficam precipicios, mas daquellas alturas tamhem se avista a foz do Tejo; e em frente desde o bairro de Belem até o convento de Santos-o-Velho; se estende Lisboa com a sua compacta população: dalli, apenas ladeando no ponto que occupa o espectador avista os togares d'Amora, d'Arrentella os paços d'Azeitão, a eminencia de Palmella; o Seixal, o Barreiro, terras quasi exclusivamente de pescadores; Lavradio, acreditada por seus generosos vinhos; Aldêa-gallega, sitio de frequentíssimo transito, Alcochete e outras; e tambem se divisa o castello da piscosa Cezimbra, como lhe chamou Camões.

Almada, com o seu castello no sitio mais elevado, foi (ao que dizem alguns) fundada pelos inglezes, que entraram o Tejo na armada do norte de Guilherme, o da longa espada que tanto auxiliou D. Affonso Henriques na tomada de Lisboa: contam que este nosso ínclito monarcha doára este districto aos que desistindo da cruzada á Palestina, a que se destinavam, preferiram ficar em nossas terras referem mais que estes primeiros povoadores lhe pozeram o nome de Vimadel [Monarchia Lusitana, tomo 3.°, livro 10, cap. 27], que em sua lingua significava povoação de muitos; porém que, possuindo-a de novo os mouros, foi tirada do domínio destes por um cavaleiro, do appellido de Almada descendente dos primeiros que com esta denominação de sua familia fixou o da povoação.

Guilherme, o da longa espada (William Duke of Normandy), detalhe da tapeçaria de Bayeux, c. 1070.
Imagem: Wikipedia

Ha quem diga que um arabe, por nome Almadéz ou Almadão a fundára: porém nestas controversias d'etymologias, de ordinario ou vagas ou falsas, não queremos entrar e deixamos a escolha ao arbitrio dos leitores, em quanto não houver quem as assente de forma incontestavel.

Sabemos que D. Sancho 1.° deu foral á Villa d'Almada, e fez della doação aos cavalleiros da ordem militar de S. Tiago em 1187, e que D. Diniz a encorporou na Corôa, dando em troca á dita ordem as villas de Almodovar, e Ourique com os castellos de Marachique e Aljesur.

— As suas duas parochias, a de N. S.a d'Assumpção, vulgo Santa Maria do Castello, e de Santiago, são de remota data: a casa da Misericordia fundou-se n'um hospital instituido pela infanta D. Beatriz mai d'elrei D. Manuel.

Os seus arredores são cobertos de quintas e fazendas rendosas, onde se cultivam os generos, que fazem a abastança do nosso paiz: familias nobres e ricas ahi tinham e muitas, conservam hoje apraziveis vivendas.

Lago do Antelmo — Alfeite, João Ribeiro Cristino, 1883.
Imagem: Veritas leilões

Dos mananciaes nas visinhanças de Almada faz menção o Dr. Francisco da Fonseca Henriques no seu Aquilegio medicinal, e diz que a agua da fonte do Alfeite, chamada a biquinha, era excellente, usada contra os achaques de dor de pedra, e areias da bexiga.

A Fonte da Pipa, que de Lisboa se está vendo, é notavel pela bondade e abundancia das aguas, de que se refazem os navios para suas viagens; e tem contigua uma pequena praia, como a fez a natureza, sem artificio algum, mas que é uma especie de portinho, capaz de conter dezoito lanchas.

Almada, Olho de Boi, Fonte da Pipa, 2015.
Imagem: Pedro Ramos

O logar de Cacilhas assente á beira d'agua , numa quebrada entre os outeiros, pela qual se prolonga para o interior, é como um porto d'Almada, com seu caes de segura cantaria, principalmente frequentado dos barcos e pessoas, que transitam de uma para a outra margem.

Cacilhas vista do Tejo, gravura xilográfica, João Pedroso, 1846
Imagem: revista O Panorama, n° 18, 1847 [*]

Se deixarmos a villa no alto, e caminharmos á esquerda depois do desembarque, iremos dar á Cova da Piedade onde ha uma ermida, em que houve noutros tempos um pequeno recolhimento; o rocio adjacente foi celebre pelas festas que se faziam em repetidas romarias, e agora ainda mais o é depois da memoravel batalha do dia 23 de Julho de 1833.

Frontespício do Compromisso da Irmandade da Virgem Nossa Senhora da Piedade sita na ermida de S.Simão de Mutela termo de Almada.
Ordenada no ano de 1606.
Imagem: Rui Manuel Mesquita Mendes

No districto d'Almada fica a Torre-velha, ou de S. Sebastião de Caparica assim apellidada dos nomes de um lugarejo proximo, e do fundador, elrei D. Sebastião: está fronteira á outra torre de S. Vicente de Belem, fechando esta garganta, que é das mais estreitas paragens do rio; como encerram a foz as outras fortalezas, de S. Jultão, e de S. Lourenço ou do Bugio. Póde jogar artilharia ao lume d'agua, mas não é defensasel do lado da terra, por isso que lhe fica sobranceira uma altura muito visinha.

A frota francesa commandada por Roussin força a entrada do Tejo, Pierre-Julien Gilbert, 1837.
Imagem: Fortificações da foz do Tejo

No termo da villa ha muitos lugares; alguns bastante apraziveis pelas quintas de que são cercados: por duas especiaes circumtancias mencionaremos dois delles.

— O lugar da Amora, em sitio desafrontado e ameno, tem uma freguezia do orago de  N. S.a do Monte Sião; dizem os P.es Carvalho e Fr. Agostinho de St.a Maria ser a unica desta invocação que ha nos paizes catholicos da Europa. A aldeia de Payo Pires, que erradamente chamam de Pai Pires, deve o nome ao seu donatario, o esforçado D. Payo Pires [ou Peres] Correa, que libertou o Algarve do jugo mourisco, e tem honrada memoria em nossas antigas chronicas.

Vista da Amora, Tomás da Anunciação, 1852
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

Em Almada nasceu, residiu por muito tempo, e morreu o erudito Diogo de Payva d'Andrade, sobrinho, auctor do poema epico em verso latino, Chauleidos: de quem diz o P.e Antonio dos Reis, em um dos epigrammas do "Enthusiasmo poetico", que "extrahindo os sons da tuba altisonante, e cantando, infundira espanto ao rochedo d'Almada." Cantantem pavilans extimuit Almadica rupes. (2)


(1) O Panorama, Ficha Histórica, Hemeroteca Digital
(2) O Panorama, n° 204, vol. I, Lisboa, Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, 27 de março de 1841.

Bibliografia estrangeira referida:
Link, Heinrich Friedrich, Voyage en Portugal, Paris, Dentu..., 1808
Murphy, James Cavanah, Travels in Portugal... 1789-1790: with plates, London, A. Strahan, 1795
Châtelet, Louis Marie Florent Du, Voyage Du Ci-Devant Duc Du Chatelet, En Portugal... Tome 1, Paris, F. Buisson, 1797-1798
Châtelet, Louis Marie Florent Du, Voyage Du Ci-Devant Duc Du Chatelet, En Portugal... Tome 2, Paris, F. Buisson, 1797-1798
Kinsey, Rev. William Morgan, Portugal Illustrated, London, Treuttel, Würtz, and Richter..., 1828

2 comentários:

Falésia Caparicana disse...

Excelente artigo, com enorme e interessante trabalho de pesquisa. Obrigada por estas lições de história.

Rui Granadeiro disse...

Um prazer Falésia Caparicana, nunca é demais "Propagar Conhecimentos Úteis"...