sexta-feira, 8 de julho de 2016

Caldeirada à Pescador

Publicar de novo O Espreitador na Romaria do nosso, José Daniel Rodrigues da Costa, tem por objectivo celebrar o facto de termos ultrapassado as 100.000 visitas.

Recrutas portugueses da província da Estremadura, c. 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Com determinação, idêntica à dos recrutas da imagem, durante os ultimos 25 meses, nas 328 publicações que fizemos, referenciámos informação em milhares de documentos e imagens e estabelecemos ligações a essas fontes de conhecimento.

Nesse percurso, quantas vezes as imagens nos contavam uma história diferente do texto que acompanharam. Ou quantas vezes o nome dado aos excertos foi antagónico ao do documento completo. Todos esses documentos são histórias várias vezes contadas e, todos eles, com mais histórias por contar.

Um frade franciscano e um irmão laico antes da abolição da sua Ordem, c. 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Assim, enviamos o nosso reconhecimento aos autores e proprietários dos documentos e imagens aqui apresentados, e também a todos aqueles que a este projecto facilitam, colaboram, discutem ou simplesmente visitam.

Por ora, vamos dar lugar à ironia e comicidade de um autor, neoclássico, onde não se esperam as subtilidades e doçuras do romantismo ainda distante.

ooOoo

Vindo á notícia do nosso bom Espreitador as infelicidades de uma romaria, que se fez com certo rancho de senhoras ao sítio da Costa, a rogos de um dos concorrentes se propôs descrever a mesma função, e os seus acasos, que não deixam de merecer a atenção das gargalhadas.

Jozé Daniel Rodrigues da Costa, (1757-1832).
Imagem: Tertúlia Bibliófila

Foi a cinco deste mez [agosto de 1802], que cinco sujeitos da Fábrica Moderna convieram em fazer uma função de romaria ao sítio da Costa, por quererem tirar o ventre de miséria de peixe:

e onde se poderia pilhar mais fresco, do que ali ao tirar da rede? Oh gostosa caldeirada, ferve, e toma o gosto dos temperos, até que estas barrigas se vão cevar no teu portentoso molho! Esperem os pargos, detenham-se os robalos, não apareçam por ora os gorazes, nem os congros, em quanto estes cinco viajantes se não põem a caminho para os tirar do lanço!

A leiteira e o pescador [ou peixeiro], c. 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

No dia premeditado sairão estes cinco individuos com duas famílias de senhoras, umas assim, outras assado; porém todas de modernismo, á excepção de duas tias muito velhas, que serviam de preladas aquela comunidade.

Pelas seis horas da manhã embarcou o rancho no Cais da Pedra com excessivo contentamento, e de alforje somente um cruzado novo de pão. Cantaram-se modinhas pelo mar, houve muitas risadas; porém todos em jejum para poderem abranger a grandeza da caldeirada.

Lugar de atracagem em Belém, c. 1824.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Chegaram a Cacilhas, oh que lindeza de terra pelas providencias, que tem para o comodo das senhoras! Apenas o rancho saltou no cais, saltarão também no rancho vinte e dois garotos de grande marca, oferecendo burros às senhoras.

Um se esmerava em dizer que o seu era de albardinha; outro dando um murro no companheiro, se adiantava a inculcar o seu, porque tinha cadeirinha: acolá vinha um banazola meio bêbado, oferecendo um macho de albarda: aqui vinha uma mulher com muitos cumprimentos, manifestando ao rancho um machinho de sella, que apenas o apanhou justo, também logo pediu um bocadinho de tabaco para a sua caixa, porque estava sem elle; e o resto da rapaziada aos bofetões, e cambalhotas uns aos outros, com seu sanguinho nos queixos, pela emulação de "o meu burro é bom, o teu não presta".

Já todos tinham cavalgaduras, quando o círio da pescaria se organizou, e se pôz a caminho: forte festa, forte alegria, e forte jantar de peixe se espera. Tantas eram as senhoras, tantas foram as quedas, que se deram.

Senhoras que passeiam montadas sobre burricos, c. 1814.
Imagem: Google Books

Um dos Tafuis, que levava uma garrafinha de mostarda n'algibeira para despertar o apetite da caldeirada, infelizmente, quando uma senhora caiu, elle descendo-se com mais brevidade, para lhe acudir, tal jeito deu, que fez a garrafa em farinha, e aqui temos dentro d'algibeira nada menos que outra caldeirada, que consta de bocados de vidro, um lenço branco finíssimo ensopado em mostarda, ou forro da casaca perdido, e uma caixa de rapé quebrada, da qual o retrato não tinha custado pouco.

Cavalheiro de Lisboa, c. 1808.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Que grandeza d'alma não é precisa a um destes, para não fazer caso de semelhante desastre! O que lhe dava alguma consolação era saber que a senhora, sua apaixonada tudo lhe havia de levar em conta.

Dama da classe média de Lisboa, c. 1808.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Continuou tudo em sossego depois desta mixórdia, quando a poucos paços o machinho de sella, que era manhoso, se pôs aos couces de forma que sacudiu o cavalheiro, abrindo-lhe a cabeça na esquina de uma pedra.

Oh desgraça, que tiraste de inquietar esta paz de espíritos!

Chovem lenços a aperrar a cabeça do enfermo, elle branco como a cal da parede, esforça-se por não se mostrar maricas; uma das tais velhas limpa-lhe o rosto, a outra pergunta-lhe se doe no peito; mas elle de que mais se queixa é dos quadris, e de toda aquela parte: a apaixonada com as lagrimas nos olhos, maldiz a hora, em que lembrou a romaria.

Saindo de Cacilhas com oito rapazes pelo caminho, não tinham um só, que fosse buscar uma gota d'agua, porque é o costume desaparecerem, e só permitirem a graça da sua estimável companhia, quando a mesa se põe.

Aqui temos já um festeiro a pé, que nunca mais montou no macho, por lhe tomar medo e uma das velhas sacrificando-se a ir de penitência, com tanto que elle fosse a cavallo: o certo é que ele, e ela foram aos poucos.

Elegante do povo, Henri l'Evêque, c. 1814.
Imagem: Google Books

Chegou o rancho á Costa, e dado à costa com fome do tamanho de todo aquele areal.


Traje feminino nas cidades portuguesas, c. 1828.
Imagem: Internet Archive

Eis que negras, e condensadas nuvens enlutam a atmosfera; aparece um relâmpago, dizendo pela voz de um horroroso trovão: "não há peixe porque em quanto eu me demorar por este sítio, não tem licença os peixinhos, para virem fóra d'água".

Com efeito falou o trovãozinho pela boca de Júpiter; porque o mar encapelado, e negro, relâmpagos sucessivos, trovões amiudados, e água a cântaros, fazia tudo uma caldeirada, que se não podia tragar.

Pescador e sua familia [Pedrouços], Marianne Baillie, c. 1823.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Ofereciam-se grandes interesses aos pescadores, mas nem assim os brutos se moviam a ir botar a rede.

Bellas Artes, 16, Costa de Caparica, A. Roque Gameiro, Paulo Emílio Guedes & Saraiva.
Imagem: Delcampe

Desenganado pois o rancho, de que não havia com que matar a fome, já corria às barracas daquele sítio, onde não acharam mais que duas postas de bacalhau muito encortiçado, e quatro cebolas cozidas: parece que o diabo de propósito lhes tinha preparado aquele banquete.

Bellas Artes, 15, Costa de Caparica, A. Roque Gameiro, Paulo Emílio Guedes & Saraiva.
Imagem: Delcampe

As meninas lá se acomodaram com o pão do alforje, porém uma das velhinhas entrando com o bacalhau de volta, tanto rilhou, tanto rilhou nele, que dos únicos quatro dentes, que tinha na boca, um que estava já como badalo de sino, veio a terra.

Velha camponesa de Sintra, c. 1823.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Os rapazes dos burros, que lhes cheirou a função a pão seco, por não deixarem saudades, se despedirão em silêncio, e vieram para Cacilhas esperar o rancho.

Desconsoladamente votou o rancho das senhoras em marchar logo daquelas praias, e pondo-se tudo outra vez a caminho com caras de Monges d'Arrábida, se até ali as tinham de anjinhos de presépio, chegarão a Cacilhas pingando:

Traje feminino habitual em Portugal, c. 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

e naquele lugar, com carapaus fritos, que foi o que se achou, puseram uma rolha na boca á fome.

Houve suas descomposturas com a dona do machinho, e mais palavra, menos palavra, afretou-se uma falua para ser transportado o rancho para Lisboa. Vinham aquelas almas capazes de se pedir para ellas; porque vinham ensopadas, agoniadas, esfaimadas, enxovalhadas, zangadas, e tudo o mais, que aqui se lhes poder ajuntar, que acabe em adas.

Saltarão para dentro da falua: foi o arrais o braceiro das senhoras, que ainda com ser grosseiro, tem occasiões, em que o interesse lhe ensina a politica. Chamou a companha; porém mal sucedido, porque cada um vinha por sua vez: ora desviava a falua do cais, ora tornava ao cais, e afretando a embarcação a este rancho, por suas moças de pau, queria fazer carreira.

A View taken from LISBON of the Point of Cassilhas, the English Hospital, & the Convent of Almada * : On the opposite side of the Tagus _ the original drawing by Noel in the possession of Gerard de Visme Esq.r / Drawn by Noel ; Engraved by Wells.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal



Gritava o arrais: lá vem o senhor capitão; deem lá a mão ao senhor capitão, venha cá, senhor capitão, venha cá comigo.

E tal algazarra se fez, que duas horas e meia durou o embarque, e completou-se o chamado frete com algumas quarenta pessoas dentro.

Ora em quanto a embarcação veio terra terra, vinham as senhoras do rancho nas suas glórias; mas tanto que se levantarão os pauzinhos, e se lhes dependurarão os estandartes, eis a embarcação fazendo bordos, eis as balhadeiras a saltarem de crespas, e a botarem borrifos para dentro com cada sopapo, que era uma consolação.

As meninas carregando na falua pela parte oposta, para ver se a endireitavam: as duas tias velhas já com cara de icterícia, dizendo lá comsigo: negregada festa.

A cada balanço chamava-se por quantos santos tem a folhinha.

O que metia mais compaixão era a tia desdentada a vomitar os carapaus fritos de Cacilhas; mas consolavam-na dizendo-lhe que isto livrava de uma doença: ao que ela respondia que antes queria ver-se achacada toda a vida, do que achar-se naqueles lances.

E afinal, nesta confusão de misérias, chegou tudo a salvo ao Cais da Pedra.

A View of the PRAÇA DO COMMERCIO at LISBON, taken from the Tagus : the original Drawing by Noel in the possession of Gerard de Visme Esq.r / Drawn by Noel ; Engraved by Wells.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Foram para casa, quasi como a pau, e corda, e dois meses a fio se falou na função a todos, que as visitavam.

Mulher transportada ao hospital, Henri l'Evêque, c. 1814.
Imagem: Google Books

Quem quiser talhar outra festa semelhante, aqui lhe achará o risco. (1)


(1) José daniel Rodrigues da Costa,  O espreitador do mundo novo: obra critica, moral, e divertida, Lisboa, Officina de J. F. M. de Campos, 1819 [1.a edição, 1802]

Leitura relacionada:
Humor impresso: cultura e política em "O Espreitador do Mundo Novo"


Outros trabalhos do autor:
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