sexta-feira, 26 de junho de 2015

O Romãosinho

Quando uma pessoa vae pela primeira vez a Cacilhas, no louvavel e innocente proposito de subir a encosta do Ginjal, para do alto do Castello de Almada se extasiar na contemplação do soberbo panorama da cidade, talvez o mais bello do mundo, fica surprehendida e atordoada no meio de uma horda e selvagens indigenas que a agarram ao desembarcar e não deixam dar um passo sem pagar o pesado tributo de ser transportada.

Panorama de Lisboa visto do Tejo, ed. Costa, 465, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Esses selvagens dividem-se em duas tribus, a dos cocheiros e a dos burriqueiros. A primeira aspira simplesmente a desconjunctar-nos os ossos, dentro d'umas caixas immundas a que da o nome de trens; a outra contenta-se em nos bifurcar n'uma enxerga enorme, debaixo da qual apparece a cabeça melancolica d`um burro paciente e resignado; e n'essa posição ridicula e em passo cadenciado passeiar-nos pelas ruas da villa no meio das chufas e dichotes dos seus naturaes.

Trem, veículo de tração animal.
Imagem: Flores, Alexandre M., Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia de Cacilhas

Longe porem d'essa turba assustadora, que nos aperta, acotovella, ensurdece e esfarrapa, ve-se um homem alto e magro, figura robusta e valida, os olhos encovados, a côr terrena e palida; os cabelos crespos; a boca negra, os dentes amarellos, como a miniatura do inconsolavel Adamastor, ou como uma personagem transportada para a vida real, d'uma das telas sublimes de Goya.

É o Romãosinho.

E o aspecto d'aquelle todo que desagradavelmente nos impressiona á primeira vista, sem pretenções a homem, sem correcção de postura, sem vislumbres de alegria, sem ambição de adquirir e sem receio de perder, traduz as estancias dolorosas e sentidas que dilaceraram aquella alma candida e pura, quando o tufão da desgraça lhe apagou a estrella luminosa que o guiava na vida sonhadora da sua mocidade.

Aquella barba incorrecta. aquelle olhar abstracto. como quem procura o que já não póde achar, aquella expressão fria e desdenhosa, aquella figura exotica e repellente, aquelle homem, emfim, aspero e rude que afugenta e enffastia, lembra as ruinas amarellecidas e abandonadas d'um formoso edificio que d'antes tivesse abrigado a alma inspirada d'um poeta, ouvindo-o contar os magicos encantos das rubras alvoradas, os longos desmaios  dos crepusculos nas tardes amenas do estio e as indefinidas tristezas das noites frias e luminosas. em que as aves caladas se aconchegam nos ninhos e a lua se revê nas aguas azuladas d'um lago transparente e calmo.

Pobre Romãosinho

De tantos que por ahi passam, poucos ha que fossem capazes e sentir os echos tristes d'esse amoroso coração na hora angustiosa da sua desventura indefinida.

E, se acaso alguem lhes contar a causa da tua desalentada magua, responderão com um sorriso imbecil e desdenhoso por esse grande sentimento do amor que tu possuiste e que elles não comprehendem, porque Deus não o concede aos infimos grilhetas da materia.

E como é simples a historia d'este paria! E como se conta em duas palavras um longo drama de angustias!

Fora de pequeno creado no mar. Aos vinte annos era dos trabalhadores mais estimados e respeitados do sitio.

Pharol de Cacilhas, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 3, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Vestia com um primor e graça pouco usado então na sua classe, e aos domingos nenhum dos seus collegas, assistia com mais donaire á missa parochial, nem passeava depois pelas ruas, attrahindo com e e os olhares sofregos das raparigas d'aguelle tempo, por quem parecia ter uma grande indifferença.

Amava o mar, seu mestre na lucta, e a canóa, a melhor garantia da sua independencia.

Cacilhas, Caes e Pharol, ed. desc., década de 1900.
Imagem: Delcampe

Mas um dia viu descer até elle o olhar meigo e acariciador d'uma formosa mulher que lhe offerecia com os labios sensuaes e sequiosos de beijos os delicados perfumes das flores de laranjeira da sua corôa de noivado, e um rinho futuro de sonhos voluptuosos, de francas alegrias sinceras, de ineffaveis encantos dulcíssimos, de tudo emfim que constitue a felicidade suprema na vida.

E na doce contemplação d'esse formosíssimo vulto elle sentia o seu espirito inundado de toda a santa poeira do ceu.

E o seu braço forte de athleta invencível, e a sua alma generosa embalada desde a infancia pelas infinitas harmonias do mar, uniram-se para dar áquella adorada creatura todo o bem estar e felicidade de que se achava digna. E ella em paga murmurava-lhe ao ouvido com a sua voz enamorada umas phrases tão meigas que lhe fortaleciam o espirito e alegravam o coração.

Pouco durou esse amoroso idyllio.

The Laughing Woman.
Imagem: Skagway Stories
Essa adorada mulher que elle tinha engrinaldado com as mais delicadas flores da santa poesia da sua alma, desappareceu-lhe um día. inesperadamente... como viera... qual branca visão d'uma ballada de Ossian!...

O que se passou então n'aquelle coração dilacerado, não ha palavra humana que o exprima. Elle proprio não o soube contar; d'aquelles labios contrahidos nunca sahiu uma queixa... d'aquelles olhos abstractos nunca rolou uma lagrima.

O mundo passou a ser para elle um arido deserto, onde se sentia morrer á mingua d'uma consolação e d'uma esperança.

O mar,  o seu velho amigo, a quem d'antes contava os segredos íntimos se sua alma, radiante de felicidade, ao percorrer-lhe o dorso dourado pelas tremulas scintillações do sol; a aragem que lhe enfunava o latino branco de seu barco, os amigos íntimos que encontrava, os perfumes dos campos por onde vagueava dias inteiros, os murmurios das aguas, os cantos das aves, a felicidade dos ninhos, o sussurro do vento, os echos sonoros das grandes solidões, as emanações balsamicas das flôres que se misturam na athmosphera, tudo emfim que a natureza nos offerece nas alegres palpitações da vida, tudo lhe trazia á memoria essa divina imagem de que jámais se podia esquecer.

Ás vezes entrava no templo, e os cirios fulgorantes dos altares, e os canticos tristes das cerimonias e as preces cadenciadas que sobem ao ceo entre nuvens de incenso, e toda aquella uncção religiosa, combinava-se já tão pouco com a sua descrença atroz, que sentia o coração estalar mais, fibra a fibra, como as cordas metallicas d'um salterio em tristes vibrações harmoniosas.

Cacilhas (Portugal), Largo do Costa Pinto (detalhe), ed. Martins/Martins & Silva, 18, década de 1900
Imagem: Delcampe

Um dia bebeu, e o vinho fel o perder por alguns momentos a consciencia da sua desgraça.

Desde então nunca mais deixou de pedir a esse liquido que alegra e entristece. que inspira e desvaira, que arrebata e narcotiza, o lenitivo supremo d'uns minutos de inconsciente alegria, prologo de horas beneficas de descuidado e profundo adormecimento.

E assim se vae finando dia a dia, n'um suicidio lento, esse grande desgraçado. Como eu te comprehendo bem, meu pobre Romãosinho!

Vista tomada no porto de Cacilhas, face a Lisboa, Hubert Vaffier,  1889.
Imagem: Bibliothèque nationale de France

Tu és uma bella estrophe realista do eterno poema da desgraça e do amor. (1)


(1) Ferreira, Libanio Baptista, O Occidente, n° 562, 1894

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