sábado, 23 de janeiro de 2016

Nacional

Viajar?... qual viajar! até á Cova-da-Piedade, quando muito, em dia que lá haja cavallinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro-do-Paço, todas as ruas como a rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare. (1)

Carris 255, AEC Regent Mk. III 255.
Imagem: Carris 255 Preservation Group

Fidalgo.
Esta barca onde vai ora, 
qu'assi está apercebida?

O Nacional, Soc. Jerónimo Rodrigues Durão, Herd. Lda, nacionalizada em 1975.
Imagem:hdpixa

Diabo.
Vai para a Ilha perdida, 
e há de partir logo essora.

Fidalgo.
Pêra lá vai a senhora?

Diabo.
Senhor, a vosso serviço.

Fidalgo.
Parece-me isso cortiço.

Diabo.
Porque a vedes lá de fora.

O Nacional atracado no pontão de Cacilhas, 1979.
Imagem: almaDalmada

Fidalgo.
Porém a que terra passais?

Diabo.
Para o Inferno, senhor.

Fidalgo.
Terra é bem sem sabor.

Diabo.
Quê! e também cá zombais?
E passageiros achais 
pêra tal habitação?
Vejo-vos eu em feição 
pêra ir ao nosso cais.
Parece-te a ti assi. 
Em que esperas ter guarida? 
Que deixo na outra vida 
quem reze sempre por mi.
Quem reze sempre por ti?
Hi hi hi hi hi hi hi.
E tu viveste a teu prazer
cuidando cá guarecer,
porque rezam lá por ti?

Cacilheiro Nacional atracado e ferry Eborense a aproximar.
Imagem: Retratos de Portugal

Embarca, ou embarcai,
qu'haveis d'ir à derradeira.
Mandai meter a cadeira,
qu'assi passou vosso pai.
Que, que, que! e assi lhe vai?
Vai ou vem, embarcai prestes:
segundo lá escolhestes,
assi cá vos contentai.
Poisque já a morte passastes,
haveis de passar o rio.

Fidalgo.
Não há aqui outro navio?

O MS Nacional em Cacilhas, década de 1990.
Imagem: Vitor Cid - Fotografia no Facebook

Diabo.
Não, senhor, qu'este fretastes,
e já, quando espirastes, 
me tínheis feito sinal.

O cacilheiro Nacional, iniciando a marcha a ré, década de 1970.
Imagem: José Luis Covita

Fidalgo.
Que sinal foi esse tal?

Diabo.
Do que vós vos contentastes.

Fidalgo.
A est'outra barca me vou.

Nacional nos estaleiros Baptistas em Alhos Vedros, Luis Miguel Correia, 2006.
Imagem: Lisbon Ferries - Cacilheiros

Hou da barca! pêra onde is?
Ah! barqueiros, não m'ouvis?
Respondei-me. Hou lá, hou! (2)


(1) Almeida Garrett, Viagens na minha terra, Lisboa, Imprensa Nacional, 1856
(2) Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno, Lisboa, Liv. Pop. de Francisco Franco

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