quarta-feira, 4 de maio de 2016

Almeida Garrett

— Uma boa nova; o Garrett vem passar o resto da primavera e o verão comnosco [...]

Uma fragata inglesa a chegar ao Tejo frente à Torre de Belém, com uma fragata portuguesa ancorada ao largo pela sua popa, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Garrett mandou o seu saco de noite, uma pasta com manuscriptos, e o estojo de toilette, peça esta que, á primeira vista, podia parecer uma caixa de instrumentos cirúrgicos e juntamente uma botica portátil: tal era a quantidade de ferros cortantes em forma de canivetes, escalpellos e bisturis; as tesoiras de todas as dimensões, as pinças, as esponjas, de todos os tamanhos, e a enorme quantidade de frascos que encerravam finissimas essências combinadas pelos mais imaginosos e mais famosos perfumistas de Londres e Paris.

O dono da casa, vendo o estojo aberto diante do espelho, contemplou-o, como eu contemplava as notas, isto é, com os olhos arregalados de pasmo, e, passados alguns momentos, voltando-se para mim, disse com ar solemne:

— Ora veja o meu amigo de quantas cousas pôde precisar um homem n'este mundo!

Garrett preguiçava, mas aquellas horas de preguiça eram como as de Byron. De quando em quando do dolce far niente, que os italianos entendem por fazer aquillo de que se gosta, saia uma flor delicada e perfumadíssima, que iria enlaçarle na graciosa grinalda das "Folhas Caídas".

Garrett, n'essa época, estava na força da vida, tinha quarenta e oito annos, mas havia muito que lhe chamavam velho.

Iconografia do Romantismo, O deambulador sobre o mar de névoa (detalhe), Caspar David Friedrich, 1818.
Imagem: Wikipedia

Sentia-se na força da inspiração. Os versos, com o ardor dos vinte annos, desatavam-se de dia a dia. Ao mesmo tempo gisava as scenas do seu grande romance "Helena", de que ha pouco sairam os primeiros capítulos, formosos quadros, que deixam o leitor suspenso em ardente curiosidade.

Ah! porque descaiu mortal a mão do artista!

Parece que o poeta presentia já a morte quando, com sorriso melancólico, me recitava estes lindos e apaixonados versos:

Bem o vés, o alaúde caía-me
D'estas mãos que não tem já poder;
E o som derradeiro fugiu-me

Do hymno eterno que ergui ao nascer.
Ai! por ti, por ti só, á memoria
Vem saudades do tempo da gloria !

Oh! os poetas, os poetas!... Só elles têm alma de pagar as volúveis carícias da mulher com a immortalidade! (1)

Assomava a primavera de 1849. — N'esse tempo, em Portugal, havia primavera. — Deixou bem gratas recordações áquelles, que são hoje açoitados, em abril e maio, com as granisadas aspérrimas de dezembro!

Uma extensa vista de Lisboa no rio Tejo com a praça do Terreiro do Paço, a velha catedral e o castelo de S. Jorge, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
Imagem: MAGNOLIA BOX

Os dias da estação vernal chegavam-nos sorridentes, azues, e illuminados. As roseiras nos jardins, o pomar na horta, o relvão nas chapadas, cobriam-se de botões e de flores.

O pardal nos beiraes dos telhados, as andorinhas nos ares, as tutinegras, os rouxinoes nos balsedos e nas faias sussurrantes e sombreiras, papeavam, alegres e enamorados [...]

Um dia Almeida Garrett escreveu uma longa carta a Alexandre Herculano. N'esse papel fazia-se uma confidencia amarga!

O poeta havia levado mais um revez, dos muitos da sua combatida e aventurosa existência. Estava n'um momento análogo áquelle, que lhe inspirara — n'umas paginas de prosa, que vêm nas "Flores sem fructo" — esta apostrophe á solidão:

"Solidão, eu te saúdo! Silencio dos bosques, salve!
A ti venho, ó natureza: abre-me o teu seio.
Venho depor n'elle o peso aborrecido da existência; venho despir as fadigas da vida."


Suppunha, illudido pela dor, que poderia prescindir do mundo, elle, o mais mundano de todos os artistas; elle, para quem os fastígios do poder, as pompas do luxo, os máximos requintes do gosto; as pérolas, as saphiras, as esmeraldas e os diamantes, rutilando no seio, nas mãos, nos cabellos negros retintos, ou loiros acendrados, da mulher apetecida — ou adorada — se tornavam impreteriveis!

Vista de Lisboa, Jean Baptiste Pillement.
Imagem: Viático de Vagamundo

Mas, no momento, a sua dor era intensa e sincera; por isso, confirmando o preceito de Horácio, ao descrevel-a, a todos nos commovia. Grandes foram as provações, porque passou aquelle desmesurado espirito! 

Para quem o lidou de perto, sobretudo nos últimos tempos, pelos seus versos — "Flores sem fructo", e "Folhas caídas" — é fácil determinar quaes foram as crises, os accessos dolorosos, no drama d'aquelle coração, que teve mais de um affecto, que facilmente se deixava seduzir, mas que tão profunda, tão arrebatadamente se apaixonava! 

Depois de grandes desgostos domésticos, que as dicacidades brutaes e malévolas de ânimos corrompidos vinham ainda envenenar, o poeta parecia succumbir aos revezes da má fortuna.

Uns versos das "Flores sem fructo" explicam o estado da alma do auctor do "Camões", n'esse periodo. Não é a dor acerba, é o desalento supremo; tédio, fastio moral, o mais requintado tormento, que pode cruciar o homem!

Quando uma luz imprevista, serena e penetrante, o veiu arrancar áquella apathia moral, o poeta disse: 

Eu caminhava só, e sem destino,
No deserto da vida;
N'alma apagada a luz, e o desatino
Na vista esmorecida:
E afastava de mim, que me impeciam
No caminhar adeante,
Os prazeres dos homens, que sorriam,
E a turba delirante
De seus empenhos vãos. — Aos que gemiam
Sorria eu de inveja...
Quem podéra gemer!... mas arredava
Esses também: não seja
Traição a sua dor! — Eu caminhava
Só, triste, só, sem luz e sem destino,
A vista esmorecida,
A alma gasta, apagada, e ao desatino.
No deserto da vida.


Quem não atravessou uma crise funesta não escreve assim. A vida do homem tem d'estes momentos psychologicos; mas é preciso ser um grande artista, para lhe acertar com a nota verdadeira, propriamente humana!

Mais adeante, appellando para o suicídio, o poeta exclama:

E sentei-me, cansado, n'um rochedo, 
Triste como eu, e só, 
No meio d'este valle de degredo, 
De lagrimas e dó. 
Caíu-me a fronte sobre as mãos pesada, 
E meditei commigo: 
— Nâo é melhor pôr fim a esta jornada, 
E poisar no jazigo?...

Do céo, morno e pesado, as nuvens rarefazem-se, e elle diz: 

Olhei... e vi o azul do firmamento 
Só, sem nenhum brilhar 
De estrellas, ou de lua...
Mas logo se inundava, n'um momento, 
De uma luz alva, doce e resplandente, 
Que me entrou toda n'alma!...

Vista da parte ocidental de Lisboa, Alexandre Jean Noel, início da década de 1790
Imagem: FRESS

Esta luz, esta nova estrella do poeta, era de certo a singular creança de dezoito annos, cheia de talento, primorosamente educada, bella, e, sobretudo, fina, que se enamorara perdidamente do génio e da viuvez de coração de Almeida Garrett, cujo nome era saudado nos jornaes, applaudido no theatro, coroado no parlamento, e nas academias!

Elle emprestou-lhe a "Nova Heloísa" do apaixonado João Jacques [Rousseau, Jean-Jacques, Julie ou la Nouvelle Héloïse]. O livro levava, a lápis, umas notas intencionaes. 

Julie ou la Nouvelle Héloïse, o primeiro beijo.
Imagem: Bibliothèque nationale de France

Adelaide respondeu a ellas, e um dia, cega, arrebatada, perdida, pungido o coração que exhaurira, na anciã de amar, as derradeiras notas do prazer, deixou tudo, tudo... o enleio das suas phantasias virginaes, o ambicionado futuro de uma união santa, o mundo, e a fama e o seio materno, para refugiar-se, transportada, nos braços do genial poeta!

Quem lhe não havia de perdoar o seu erro, o seu crime — se crime foi — redimido por tamanho amor!

Pondo de parte o extraordinário Miguel Angelo, de quem se conta, que não amou em toda a sua vida senão a Victoria Colonna, e que, só depois de morta, lhe deu o primeiro beijo, os artistas são susceptíveis de diversas e desvairadas impressões.

É providencial, ás vezes! Se Garrett, já no declinar da vida, não fosse accommettido de nova leviandade, — se por tal a querem capitular — não teríamos esse livro delicioso, que se intitula "Folhas caídas" [...]

Depois da morte de Adelaide, succederam-se longos, inertes, e amargos dias para o poeta, que chorava sobre um tumulo, e velava sobre um berço! Uma vez, porém, embora [...]

Era a noite da loucura,
Da seducção, do prazer,
Que em sua mantilha escura
Costuma tanta ventura,
Tantas glorias esconder.


Revia-se a melancholia no rosto do consternado poeta:

Mas a orchestra bradou alta;
— Festa, festa! e salta, salta!

Os seus guizos delirantes
Sacode, louca, a Folia...
Adeus, requebros de amantes!
Suspiros, quem n'os ouvia?


D'alli a pouco, estava escripto que outra fascinação viria tomar-lhe a alma de assalto:

Quem é esta que mais voltas
Gira, gira, sem cessar?
Como as roupas, leves, soltas,
Aerias leva a ondular,
Em torno á forma graciosa,
Tão fina! — Agora parou,
E tranquilla se assentou.


Que rosto! Em linhas severas
Se lhe desenha o perfil;
E a cabeça tão gentil,
Como se fora deveras
A rainha d'essa gente,
Como a levanta insolente !


Almeida Garrett, Pedro Augusto Guglielmi, 1844.
Imagem: Wikipédia

O risco é inevitável; a perdição está por um fio! (2)


(1) Bulhão Pato, Sob os Ciprestes, Vida intima de homens illustres, Lisboa, Livraria Bertrand, 1877
(2) Bulhão Pato, Memórias Vol. I, Scenas de infância e homens de lettras, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1894

Artigo relacionado:
Barca Bela


Referências externas:
Obras de Almeida Garrett na Biblioteca Nacional de Portugal
Obras de Almeida Garrett em archive.org
Almeida Garrett, Obras Completas, Vol. I (com ilustrações de Joaquim Manuel de Macedo)
Almeida Garrett, Obras Completas, Vol. II (com ilustrações de Joaquim Manuel de Macedo)

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