Vista da Trafaria — Saída da barca Martinho de Mello, João Pedroso, gravura Imagem: Archivo Pittoresco, vol. X, 1867 |
Pobre povoação de pescadores, onde, como em todas as da beira-mar, o rapazio accusa uma fecundidade genésica diversamente explicada, nada apresenta notavel que provoque a attenção do viajante.
Pobre e modesta como é, está, comtudo, muito mais adiantada em construcções, hygiene publica e policia municipal, do que uma colónia que possuímos ha séculos, e de que no decorrer d’estas cartas terei occasião de te fallar.
Trafaria, Vista do Largo da Egreja, ed. Manuel Henriques, década de 1900 Imagem: José Matos |
Da Trafaria ficou-me gravado na memoria um bello typo de homem, uma excellente cabeça, digna de ser reproduzida na téla pelo pincel de Rubens ou de Van Dyck.
Quando, cercados por numeroso bando de rapazes, percorriamos as ruas da povoação e a punhamos em alvoroço pela estranheza que a grande parte d’aquella pobre gente causava o nosso uniforme, tratámos de indagar se haveria um botequim, uma botica, ou outra qualquer casa accessivel em que podessemos entrar.
D’entre os rapazes, um, que se arvorou em guia, prometteu conduzir-nos á loja do Francisco Parola.
Depois de andarmos ao longo de duas ou três viellas, deparou-se-nos n’uma esquina uma casa de venda, escura e acanhada, diante da qual o nosso guia, parando, exclamou: "É aqui".
Trafaria, Rua 5 de Outubro Imagem: Fundação Portimagem |
O nosso desapontamento foi grande; o rapaz tinha-nos supposto provavelmente subditos de sua magestade britannica: estavamos á porta de uma taberna!
Quando nos dispunhamos a retribuir o equivoco com alguns sopapos, e a retirar-nos, saiu á porta saudando-nos, de barrete azul na mão, o dono da casa, ancião respeitável, de cabellos nevados fluctuando-lhe sobre a testa rasgada e alta, onde as rugas venerandas da edade, desenhadas em dois sulcos perfeitamente parallelos, imprimiam um cunho de magestade que nos impressionou.
Aquella cabeça elegante, e erguida a prumo, apesar dos annos, sobre os hombros largos e ainda robustos; o ar ao mesmo tempo severo e prazenteiro com que o homem se nos apresentou, inspiravam, de certo, um bello vulto de Daniel a um pintor privilegiado.
Tinha sido marinheiro o bom do velho, e a sua sympathia pela gente do mar o trouxe á porta a comprimentar-nos logo que viu o nosso uniforme.
Com que enthusiasmo nos fallou das suas viagens de cabos a dentro!
Era uma chronica maritima.
Falleceu-nos, porém, o tempo para conversarmos á vontade com elle.
Despedimo-nos saudosos de Francisco Parola, que, ao dar-nos a boa viagem, nos declarou que mesmo assim, alquebrado pelos annos, ainda de sentia com animo para subir á verga a rizar uma gavia debaixo de tempo. (1)
Torre do Bugio na Barra de Lisboa, João Pedroso, gravura Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
(1) Lacerda, João de, Recordações de viagem, Cartas ao meu amigo Xavier da Cunha, Archivo Pittoresco, vol. X, 1867, págs 244-246.
Fonte: Histórias Almadenses
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