Grupo de Obuses Pesados, Manobras militares do Outono (detalhe), 1937. Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo |
— Mas então, como é que não tem ouvido fallar n'aquelle rapaz que todas as tardes apparece no mesmo barco a fazer signaes ali para cima... olhe... ali aquelle mirante, aonde está uma mulher a corresponder-lhe. Nao vê?
Olhei para o lado que me indicava, e distingui eflectivamente o vulto de uma mulher, que agitava um lenço branco.
O mirante onde ella estava é aquelle que fica no flm da praia de Cacilhas, perto do sitio onde se tomam os banhos, lá mesmo em cima das ribas.
Pertence (creio eu) ás terras ou quinta que ali vem ter do sitio da Margueira.
Embouchure de la Rivière Du Tage, Nicholas De Fer, 1710 |
A distancia, e por detraz dos predios que ficam longo da praia, aquellas ribas negras, escabrosas e talhadas a pique, como se fossem rocha viva, dão um aspecto de aridez e solidão aquelle lado da praia principalmente depois das horas melancholicas do sol-posto.
O mirante assenta n'uma construcçao antiga, que vem pelas ribas abaixo a modo de configuração de torre, e parece o resto de uma muralha mourista, ali esquecida pelo tempo.
É tosco, e está ennegrecido pelos annos, e talvez pelos seculos. Faz lembrar uma torre d'atalava que d'ali, ao largo, vigiasse sobre o rio.
Embouchure de la Rivière Du Tage, Nicholas De Fer, 1710 (detalhe). |
Á tarde, quando as aguas tomam as cores bronzeadas e verdi-negras com que as sombras da noite envolvem as montanhas, deve de ser melancholico ver as ondas vir morrer na praia, e sentir o seu embate rouco e monotono como o bramido suffocado de uma grande força da natureza. (1)
Os terrenos onde viriam a ser construidos os “estaleiros do Sampaio, (tal como assim ficaram conhecidos), foram arrematados à Câmara Municipal de Almada em 3 de Maio de 1865, sendo posteriormente firmado em10 de Junho de 1865, um contrato de aprazamento, no qual o proprietário se comprometia a construir um estaleiro naval apetrechado com uma doca seca constituida por dois diques, e ainda a construção de edifícios para oficinas, depósito de madeiras e uma caldeira (área coberta para recolha de pequenas embarcações).
Carta hydrographica do littoral de Cacilhas, 1838. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
Localizava-se aquele terreno, na então existente praia da Lapa, virada a nascente cuja sua extremidade norte era formada por um cunhal de recifes rochosos, conhecido pelos cacilhenses no princípio do sec. XX como o Pontal.
Carta hydrographica do littoral de Cacilhas (detalhe), 1838. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
A poente, localizavam-se o sítio urbano da Lapa, (totalmente demolido em finais dos anos 40 de XIX, para abertura do troço da EN - 10, ligando Cacilhas à Cova da Piedade), e as propriedades e depósitos de carvão de Alexander Black. (2)
Vista tomada no porto de Cacilhas, face a Lisboa, Hubert Vaffier, 1889. Imagem: Bibliothèque nationale de France |
Aqueles armazéns situavam-se em Cacilhas, para lá do Pontal, junto à zona do estuário do rio Tejo, paredes-meias com os estaleiros da Parry & Son.
O seu acesso por terra fazia-se por Cacilhas, pelo então existente sítio da Lapa, através de um túnel escavado na rocha, que fazia parte do morro de Cacilhas e que conduzia directamente aos armazéns. (3)
A Lapa ficava no sope do Morro perto das Margueiras onde existiam os Fabricos de Cortiça, dois Moinhos de vento ja em ruinas, e, aquele altissimo "Torreão" de forma circular encimado por uma casa quadrada com telhado de telha vã rodeada por tres janelas e uma pequena porta que dava para o estreito caminho que seguia até, a hoje Praça Gil Vicente.
Cacilhas, Carro Carreira da Empreza Camionetes Piedense, Leslie Howard, década de 1930. À esquerda o bebedouro para os animais e ao fundo a zona da Lapa. Imagem: Museu da Cidade de Almada |
No interior desta exigua dependencia existia um alçapão com tampa de madeira empoeirada com uma argola em ferro enferrujado.
A base desta alta torre ficava mesmo em frente ao portao do Estaleiro ...
Nao se conhecem documentos explicitos sabre este "Torreão" — segundo informacão do Sr. Dr. Alexandre Flores, na Torre do Tombo existe algo sabre uma Muralha fortificada, que se prolongaria ate ao final de Almada acabando perto da Igreja de S. Sebastião...
A Lapa, que segundo leva a crer, terá tido origem numa Gruta que existia de facto perto da entrada do estaleiro, onde se localizava um antigo predio que foi adquirido pelo Sr. José Malaquias que o mandou reconstruir, adaptando no piso terreo uma Casa de Pasto [...]
Ao fundo da Taberna lá estava a entrada da Furna, Gruta ou Lapa, que daria o nome ao sitio "iria até a Estalagem do Sr. Carlos Narciso, cortando frente à Igreja do Bom Sucesso, e aqui bifurcando, seguia para Almada, onde, como se sabe existem subterraneos entre o Palácio da Cerca, o Forte, até ao Ginjal etc."
Sendo a Lapa um sitio relativamente pequeno possuia no entanto um encanto peculiarmente invulgar, a seguir ao já citado predio havia um armazem mecanizado de enchimento e distribuição de latas de azeite, depais, ao lado, uma enorme construção de c6modos que mais parecia um dos altos predios da Paris da Idade Media — só janelas de guilhotina e mansardas sabre os telhados, já há oitenta anos se encontrava envelhecida esta antiquissima habitação [...]
Grupo de Obuses Pesados, Manobras militares do Outono, 1937. Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo |
Faziam parte do lugar, quatro predios, a entrada para o Black, que na altura estava proibida, — fechada por uma porta de ripas de madeira — mesmo ao lado do portao das docas, e que dava acesso ao caminho que levava aos armazens da recolha de carvão onde os cargueiros acostavam para a descarga , perto das entradas dos diques [...] (4)
Lapa de Cacilhas, aguarela de Anyana, O Scala, inverno 2006. Imagem: Casario do Ginjal |
O troço entre a Cova da Piedade e Cacilhas foi construído entre 1948 e 1951, em grande parte sobre o rio, após o entulhamento das baías da Margueira e da Mutela.
A ligação a Cacilhas fez-se à custa da ruptura do morro que, até então, isolara esta povoação da Margueira. (5)
(1) Andrade Ferreira, José Maria de, Revista contemporanea de Portugal e Brazil, n° 4, Vol. III, 1861
Fonte: Hemeroteca Digital
(2) Veiga, Luís Bayó, Boletim O Pharol, n° 22
(3) Veiga, Luís Bayó, Boletim O Pharol, n° 18
(4) Anyana (Idalina Alves Rebelo), Boletim O Pharol, n° 05
(5) Rodrigues, Jorge de Sousa, Infra-estruturas e urbanização da margem sul: Almada, séculos XIX e XX, 2000, 35 págs.
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