Praia de Cacilhas, The Harbour of Lisbon, Charles Henry Seaforth (1801 - c. 1854). Imagem: reprodução em colecção particular |
Tendo eu estendido alguns caçadores sobre os flancos da coluna, continuei a minha marcha, retirando-se os atiradores inimigos de altura em altura até penetrar na estrada escavada, que por entre as barreiras do Alfeite desemboca no vale da Piedade.
Estátua
do Duque da Terceira. Desenho de Simões d'Almeida, gravura J. Pedrozo, 1877 Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
Este vale, prolongamento da enseada do Tejo, por de trás de Cacilhas, limita ao Sul as alturas de Almada, e oferece um pequeno campo plano, onde vem desembocar, de um lado, a estrada que eu seguia, e do outro as estradas do Pragal na esquerda, de Almada, no centro, e de Cacilhas por Mutela na direita.
Plan de Lisbonne son port, ses rades et ses environs avec une petite carte routière du Portugal (detalhe), 1833. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
É ali que o inimigo, conhecendo que me é superior em cavalaria, pretendia atrair a minha coluna para tirar partido daquela arma, manobra esta que eu tinha previsto pelo conhecimento prévio do terreno, confirmando-me nesta ideia a fraqueza da resistência oposta até ali à minha marcha.
Com efeito, apenas os meus flanqueadores estendidos no vale tinham desalojado os do inimigo, e a testa da coluna desembocava no mesmo vale pela estrada do Alfeite, dois esquadrões de cavalaria lançados da estrada de Cacilhas carregaram com todo o ímpeto de quem conta com uma vitória certa;
porém os meus atiradores reunindo à coluna com o maior sangue frio e presteza, e os batalhões de caçadores números 2 e 3 do comando do coronel Romão e major Vasconcelos, ambos à voz do brigadeiro Schwalbach, repeliram este ataque com tal denodo e acerto, que a cavalaria inimiga sofrendo uma grande perda, fugiu em completa debandada, cobrindo-se contra o meu fogo com os armazéns da Cova da Piedade.
Malograda assim a esperança do inimigo, tudo indicou que ele só cogitava de retirada, e por isso, deixando o regimento 6º de infantaria cobrindo a estrada do Pragal e Almada, que o inimigo tinha cortado, prossegui com o resto da força direito a Cacilhas para cortar ao inimigo a retirada, ocupando todas as avenidas que descem de Almada, com companhias destacadas do 3º regimento de infantaria.
É impossível descrever o espectáculo que apresentava aquele lugar — infantaria, cavalaria, artilharia, bagagens, generais, oficiais e soldados se precipitavam confusamente nos barcos próximos ao cais, confusão que aumentava ainda pela escuridão da noite, apresentava a imagem de um verdadeiro caos, mas, honra seja dada aos generosos triunfadores da usurpação, a baioneta do soldado que provocara e debelara o inimigo na carga, embotou-se para o inimigo vencido;
Cartas das vitórias liberais, litografia Manuel Luiz, 1835. 23 de julho de 1833 — Derrota dos Miguelistas em Cacilhas Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
as nossas espadas entraram nas bainhas, e os vencidos confundidos com os vencedores, pareciam meia hora depois irmãos de há muito reconciliados.
Como porém existisse aindá h'uma força na Villa e Castello d'Almada, fiz contramarchar a Columna ; e deixando sobre o Caes de Cacilhas a conveniente Guarda, avancei pela calçada de Almada até a entrada daquella Villa, e caminho que conduz ao Castello;
mas como fosse completamente noite, a Victoria estivesse decidida, e eu quizesse poupar o sangue dos meus Soldados, o dos desgraçados vencidos, e as desordens inseparáveis da entrada violenta de huma Povoação, especialmente de noite, o Brigadeiro Schwalback, que Commandava a testa de Columna, mandou o seu Ajudante de Campo, o Alferes Jorge, como Parlamentario, intimar á pequsna força que existia em Almada, que depozesse as armas;
mas causa-me horror dize-lo, o Parlamenlario, am despeito de todas as Leis da guerra, foi accomettido pelos Cavalleiros rebeldes, e recolheo a Columna ferido mortalmente.
Permaneci nas posições, que oceupeva, até á primeira luz do dia 24, no qual progredi sobre Almada, donde a pequena força inimiga se tinha dissipado, e apresenta do em parle, e cujo Castello se nendeo á primeira intimação, ficando a sua guarnição prisioneira de guerra, e depondo as armas na Esplanada.
Alli recebi a noticia de que o Duque do Cadaval e toda a Guarnição de Lisboa , tinhão evacuado a Cidade, a qual livre do jugo que a opprimia, tinha proclamado o Governo de Sua Magcstade Fidelíssima;
Bandeira usada pelos Liberais Imagem: Wikipédia |
e no momento em que a Bandeira da Rainha era inaugurada no Castello d'Almada, as Salvas d'Artilheria da margem do Norte, annunciavão que a mesmn suspirada inauguração linha lugar nos muros dn Capital.
Duque da Terceira (1)
Lisbon from Almada, Drawn by Lt. Col. Batty, Engraved by William Miller, 1830 |
Em Lisboa, Cadaval, que sabia a esquadra perdida, perdia o tino e a esperança.
Mandara uma divisão reforçar Molelos; e mandou para Almada Teles Jordão com três mil homens defender esse ponto avançado da capital e cooperar com o general do Alentejo!
Bandeira usada pelos Absolutistas Imagem: Wikipédia |
Não sabia que, deixando-o para trás, a coluna liberal entrara em Setúbal, galgara, sem parar, a serra de Azeitão, descendo ao vale de Coina e marchando na praia do Tejo, pelo Seixal, pelo Alfeite, até à Piedade, com Lisboa à vista.
Na Piedade, à tardinha de 23, os invasores, viram as avançadas de Teles Jordão.
A praia, estreita, apertada entre o rio e as colinas da margem, não permite o desenvolver de manobras nem dá uma vantagem grande ao número.
Os miguelistas, presente o inimigo, ignorantes dos antecedentes, julgaram Molelos derrotado: grande devia de ser o número!
E escurecia. O imprevisto, o susto, a ignorância, começaram o combate que foi logo uma derrota.
De roldão, aos tombos, fugindo como uma carneirada assustada numa estreita azinhaga, assim vieram os miguelistas correndo pela estrada, vazar-se no Cais de Cacilhas, apelando panicamente para os barcos, invadindo-os para fugir.
Era noite: e o estalar dos tiros avisava Lisboa do combate.
Chegavam por mar os voluntários de Sintra, mas já tarde; e vendo a desordem e o tropel no cais, mandavam os catraeiros voltar sem desembarcarem.
Clamorosa, desesperada, a tropa fugitiva esconjurava-os, vingando-se a tiro nos desalmados.
Nos barcos atracados, enterrados na água com o peso da gente, não cabia mais ninguém: catraeiros, largando as velas, alavam para o Tejo, escuro como a noite. O fragor era grande, mas por fortuna o rio estava manso.
Vinha, porém, já na cauda dos fugitivos o inimigo, e no espaço breve do cais misturavam-se todos, envolvidos nas trevas da noite e do ódio.
Matou-se muito nos degraus do molhe. As pequenas ondas do Tejo lambiam das pedras o sangue e os mortos.
Brigando com o cavalo que montava, para entrar na falua, estava um oficial que foi reconhecido: era o Teles Jordão, o réu de tamanhas cruezas, o cérbero da Torre!
Abateram-no com uma cutilada, arrastaram-no semimorto até à quina do castelo, contra a qual lhe racharam pelo meio o crânio.
A noite crescia, calava-se tudo, acabavam as agonias dos moribundos e os fugitivos velejavam tristemente sobre o rio, a caminho de Lisboa. E em torno do cadáver do general, à luz dos archotes com que o iam ver, os vencedores cantavam:
Já morreu Teles Jordão:Na confusão que se gerou, e traído pela semi-escuridão do entardecer, Teles Jordão, que procura pôr ainda alguma ordem em todo o desorientado grupo, interpela por engano dois oficiais de Caçadores.
Nas profundas do Inferno.
Os diabos lá disseram
Temos carne para o Inverno! (2)
Logo que se faz reconhecer é alvejado a tiro por um, acutilado por outro e liquidado à baioneta por um soldado.
Junto do forte no cais fronteiro foi morto Teles Jordão.O forte de Cacilhas, preparado para a defesa marítima, oferece curta resistência e rende-se.
Os populares apoderam-se do cadaver que andou em bolandas servindo de alvo à chacota e descarga do ódio que afinal a sua crueldade fomentara em vida.
Acabou finalmente por ser abondonado e enterrado na praia de Cacilhas e, talvez para que não restassem dúvidas que o tirano estava morto, lhe deixaram um braço de fora.
Os liberais aproveitam-se ainda da sua artilharia, disparando para o rio alguns tiros de intimidação às faluas que se dirigiam a Lisboa, carregadas de fugitivos, fazendo-as regressar a Cacilhas e paralizando várias no cais, operações que, segundo algumas opiniões tiveram a contribuição de boa vontade dos barqueiros e aumentaram o número de prisioneiros, que só no dia 23 de julho ascenderam a mais de 1000.
Durante toda a acção o forte de Almada, que — ironia do destino, os miguelistas tinham transformado para a defesa marítima, limitou-se a acolher fugitivos.
Almada, Muzeum Narodowe w Krakowie, Napoleon Orda, 1842. Imagem: História e património |
Recusando a rendição no dia 23 e recebendo a tiro os parlamentários enviados pelos liberais, rende-se afinal pelas 7 horas da manhã do dia 24, depois de grande parte da guarnição se ter escapado durante a noite. (3)
(1) Gazeta de Lisboa, 6 de agosto de 1833, a mesma versão dos acontecimentos é descrita em Napier, Admiral Charles, An account of the war in Portugal between Don Pedro and Don Miguel, London, T. & W. Boone, 1836
(2) Martins, Oliveira, Portugal Contemporâneo I, 3.a ed., Lisboa, Antonio Maria Pereira, 1895
(3) segundo a versão de António Avelino Amaro da Silva cf. Pereira de Sousa, R. H., Fortalezas de Almada e seu termo, Almada, Arquivo Histórico da Câmara Municipal, 1981, 192 págs.
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