sexta-feira, 10 de julho de 2015

A caminho de Cacilhas... (parte II)

Ora, neste dia quente e suave, era ainda a mesma claridade de sonho, o mesmo corte de azul estirado. Folhas tombadas, plantas murchas, todas a languidez de outubro era mais preocupante sob o sol sempre vitorioso. O charme de declínio, uma ameaça de morte, todas essas impressões outono que despejam uma melancolia apaixonada, pareciam hoje muito passageiras, e mais como um convite a viver de novo, a dar esperança a tempos próximos e a embriagueses renováveis.

Almada, Uma das muralhas do castelo, Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 06, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Ela não estava na sua varanda, a Senhora Amélia de Deus. Apenas o seu gato dormia sobre o muro; e eu subi com um sentimento de abandono o caminho da cidadela .

Sobre um terraplano, lá em cima, à direita do forte, havia uma espécie de jardim público, que me tinha escapado na véspera. Pelado e vazio, sombreado de acácias e olmos de folhagem avermelhada, limitado por um lado de aloés e piteiras, e por outro de um muro branco, que o dividia do largo de uma igreja, ia até à beira do rochedo onde o parapeito de pedra o separava do vazio. 

Desci os três degraus deste jardim ressequido, onde o muro claro e o céu azul, de longe, davam ainda uma vivacidade intensa, e de repente, inclinada sobre o parapeito, no corpete rosa, a senhora Amelia.

Ao mesmo tempo que eu a observava, um pouco emocionado, surgiu uma brisa que levantou a sua mantilha e perturbou uma mecha do seu cabelo castanho. Ela deixou-se acariciar por este sopro que também enchia as velas na foz. Ela parecia docemente agitada, como o rio com o reflexo ondulado numa longa esteira, em que pretentia aumentar o fluxo. E esse fôlego e esse movimento embalavam nela um devaneio harmonioso.

No caminho, as folhas mortas estalavam. Ela virou-se, viu-me e sorriu ligeiramente. Em seguida, seu busto recolheu-se num movimento lento.

Meu Deus! Até onde irá a minha impertinência? Eu aproximo-a , e num português mestiçado de francês, muito ingênuo, asseguro-a do meu respeito. Ela sorriu com os seus olhos doces e seus dentes brancos,  com um embaraço evidente.

Ao longe, um galo canta. O apito de um vapor atira para o espaço o grito de uma criança assustada. Ela disse em voz baixa:

— Vós sois francês?
— Sim.
— Então fale na sua língua.

Então ela envolve-me num olhar que renova no fundo de mim as mais antigas emoções dos meus primeiros desejos.

Aí ficamos, banhados na brisa e no silêncio, encostados sobre o parapeito, dizendo coisas quaisquer, enquanto que o céu empalidecia e a luz fundia todos os seus reflexos de azul turquesa num fragmento súbito de malaquita.

Almada, Lado Norte, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 10, década de 1900.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

— Conhece Paris? perguntou-me.
— É de onde venho.
— Oh! O que eu quereria ver Paris!

A violência selvagem de todas as suas concupiscências traiu-se então nos seus olhos, na repentinidade da sua voz, num esgar voluntário da sua boca sensual.

— Vós não encontrareis lá nada tão bonito como isto, disse-lhe. 

Ela ria como se tratasse de uma piada. Maliciosa, sedutora, quase oferecida à tentação: 

— Os franceses são sempre educados, retorquiu.

E isso era todo o seu pensamento, desde que o seu olhar flutuava em direção do mar, onde poderiamos ver a linha cintilante que limitava o horizonte. Era por isso sómente que ela subia até este jardim, subia ao jardim, a fim de confiar seus sonhos ao mar distante, de ouvir este embalar de infinito falar-lhe de Paris...

Soaram as cinco horas no campanário da igreja, e na tarde que caía, o sino cedeu uma intimidade da qual me senti de repente desolado.

Almada, Lado Sul, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 09, década de 1900.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

... Queridos pobres olhos que, neste momento, estavam talvez afogados em lágrimas, — olhos amados que o crepúsculo enchia de ternura, e onde eu gostava de me perder, onde tentei morrer, esses olhos de amor, como eles pesavam na minha alma neste momento de perda e traição!...

Mas a sombra vinha muito rápida. Na luz alaranjada do pôr-do-sol, via-se a Torre de Belém avançar em espora no rio e todos as sinuosidades da costa a morder o espaço. A frescura fez estremecer Amélia, e nesse estremecimento, ela parecia revelar todo o seu corpo, tanto que adivinhei a beleza soberana a conquistar.

E agora que ela tinha partido, tinha sentido na minha mão a sua mão ardente colocar o seu império, que eu estava como ébrio de seu olhar, audacioso e doce, de Africana com reflexos metálicos, de escrava com sombras humidas e sensuais, ficava de coração inchado, quase virado, diante da noite, imensa noite tépida onde passavam as tremuras e o vento.

La maja desnuda, Francisco Goya, c. 1797 – 1800.
Imagem: Wikipedia

E a estranha feitiçaria exercida por essa mulher não parava de crescer.

Ela tinha as mãos finas e pequenas que abandonava em mim. Seus lábios sangravam como feridas de volúpia. E eu sentia o perfume do seu corpo subir por entre os seus seios como os odores extasiados das flores por cima das ensolaradas muralhas [continua...]. (1)


(1) Vignemal, Henri, Sur le chemin de Cacilhas, L'Instantané, Supplément Illustré de la Revue Hebdomadaire, 1901

2 comentários:

Luis Eme disse...

Mais uma excelente descoberta sobre a nossa Cacilhas!

Rui Granadeiro disse...

... local de passagem, bom fim de semana Luis