O papá não guiava os trens; tinha quatro cocheiros: o Filipe, o Carvalho, o Domingos e o Severino. Em Almada, possuia uma cocheira onde guardava os carros e os animais, e onde o Américo dormia, o moço que dava as rações e lavava as viaturas [...]
Uma tarde, à hora do jantar, ainda o papá não tinha chegado, recebemos a visita de um dos nossos cocheiros: o Severino. Ouvimos da sua boca, com pasmo, que se despedia de nós, pois os seus serviços haviam sido suspensos.
Perguntámos o motivo. Ele deu aos braços, resignado: Minhas senhoras, os trens passaram de moda; agora, com a história dos automóveis americanos, tudo que seja puxado a animais vai pela água abaixo. Era a primeira vez que ouvíamos falar no prejuízo que os automóveis nos causavam
Podíamos lá supor que aquelas carripanas tão engraçadas, que uma vez por outra passavam ali pela rua, fossem a causa da tristeza do papá e da desgraça de todos nós! Que grande desgosto, ao tomarmos conhecimento da venda da primeira parelha! E quando mais tarde soubemos que a outra tinha tido o mesmo destino! Então, a nossa casa, sempre tão farta, tão feliz, transformou-se! Creio que, em toda esta fatalidade, o papá foi um fraco; não reagiu, não teve o expediente de que parecia dotado.
Cacilhas, Leslie Howard, década de 1930. Imagem: Museu da Cidade de Almada |
Só agora vejo bem que outro qualquer, na sua situação, ter-se-ia adaptado ao veículo que despontava, e resignado com o fatal progresso das coisas. O papá não. (1)
(1) Alexandre Castanheira, Romeu Correia, Memória Viva de Almada, Câmara Municipal de Almada, 1992 cf. Romeu Correia
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