segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O papá

O papá, o conhecido Vitorino Custódio, estava no apogeu do negócio: trens de aluguer na praça de Cacilhas. Os melhores veículos, os mais procurados, eram os seus. O papá vestia como um janota da época: chapéu à Mazzantini, calça justinha à perna, uma corrente de oiro, de bolso a bolso do colete, da grossura do dedo mínimo, bota de calf abotoada ao lado — sempre a rigor.

Vista panorâmica dos antigos trens de aluguer puxados por cavalos. Em 2.° plano, o marégrafo para medição de marés. Finais do séc. XIX ou início do XX. No início do séc. XX (1907), os forasteiros encontravam à saída da estação fluvial, trens ou carruagens que pelo preço de 500 a 700 réis, os transportavam a Almada, ao Alfeite e Cova da Piedade. Existiam as estalagens com trens dos cocheiros-proprietários: José Ribeiro, Narciso José, António Francisco da Silva Júnior, "Pouca Tripa", Francisco Pereira dos Santos, Domingos Manta.
in Alexandre Castanheira, Romeu Correia, Memória Viva de Almada, Câmara Municipal de Almada, 1992

O papá não guiava os trens; tinha quatro cocheiros: o Filipe, o Carvalho, o Domingos e o Severino. Em Almada, possuia uma cocheira onde guardava os carros e os animais, e onde o Américo dormia, o moço que dava as rações e lavava as viaturas [...]

Uma tarde, à hora do jantar, ainda o papá não tinha chegado, recebemos a visita de um dos nossos cocheiros: o Severino. Ouvimos da sua boca, com pasmo, que se despedia de nós, pois os seus serviços haviam sido suspensos.

Perguntámos o motivo. Ele deu aos braços, resignado: Minhas senhoras, os trens passaram de moda; agora, com a história dos automóveis americanos, tudo que seja puxado a animais vai pela água abaixo. Era a primeira vez que ouvíamos falar no prejuízo que os automóveis nos causavam

Podíamos lá supor que aquelas carripanas tão engraçadas, que uma vez por outra passavam ali pela rua, fossem a causa da tristeza do papá e da desgraça de todos nós! Que grande desgosto, ao tomarmos conhecimento da venda da primeira parelha! E quando mais tarde soubemos que a outra tinha tido o mesmo destino! Então, a nossa casa, sempre tão farta, tão feliz, transformou-se! Creio que, em toda esta fatalidade, o papá foi um fraco; não reagiu, não teve o expediente de que parecia dotado.

Cacilhas, Leslie Howard, década de 1930.
Imagem: Museu da Cidade de Almada

Só agora vejo bem que outro qualquer, na sua situação, ter-se-ia adaptado ao veículo que despontava, e resignado com o fatal progresso das coisas. O papá não. (1)


(1) Alexandre Castanheira, Romeu Correia, Memória Viva de Almada, Câmara Municipal de Almada, 1992 cf. Romeu Correia

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