sexta-feira, 15 de junho de 2018

A Escola Naval e o Arsenal do Alfeite

Dez horas batidas nesta manhã de Setembro transparente e calma, encontro junto à Casa da Balança do velho Arsenal do Terreiro do Paço, o 1.° tenente Teixeira da Silva, meu guia amável na visita que pretendo fazer à Escola da Marinha e Oficinas da Real Quinta do Alfeite, na margem fronteira.

Uma expressiva imagem do Arsenal do Alfeite.
Panorama n° 4, setembro de 1941

Aguarda-nos um rebocador, onde empreendemos a travessia. 

Diante de nós o Tejo prolonga-se num plaino reverberante, incendiado pela crueza da luz, que desce a prumo sobre a água e entontece o vôo musical das gaivotas.

O rio vive as horas matinais da faina ribeirinha que já Fernão Lopes, há quinhentos anos, não resistiu ao gôzo de anotar, e a vela côr de açafrão, perdida além, é a legenda que melhor acerta no perfil moreno de Lisboa.

Ao lado, o vaporzinho cacilheiro deixa um rasto de espumas batidas pela hélice diligente. 

À medida que nos acercamos da margem esquerda, ficam para trás as povoações da Cova da Piedade e do Caramujo, sumidas na teia de névoas que sobe da massa aquática e alastra pelas ribas até as envolver.

Vista aérea da Escola Naval e do Arsenal do Alfeite, Mário Novais.
Flickr

Agora destrinço, nitidamente, as diversas construções que compõem os conjuntos da Escola Naval e das Oficinas; no primeiro plano, à direita, observo com curiosidade o palácio mandado levantar, nos meados do século xlx, por D. Pedro V. 

Salto para um batelão, que me facilita o desembarque e antes de iniciar a minha peregrinação. chamo à lembrança. apressadamente, a leitura, feita na véspera, do "Guia de Portugal". A Quinta do Alfeire, situada a S.E. da Cova da Piedade, entesta com o Seixal e foi propriedade da Rainha D. Leonor Teles. 

Em 1401, passou para D. Duno Alvares Pereira, sendo muito mais tarde adquirida por D. Pedro II, que a encorporou na Casa do Infantado.

D. João IV e D. Miguel acrescentaram-na com novas quintas circunjacentes, até que em 1834 foi definitivamente incluída nos bens da coroa. 

Na Escola Naval recebe-me, fidalgamente, o 2.° Comandante Nuno Frederico de Brion, com aprumo e galhardia, timbre dos marinheiros de alta estirpe. 

Um ângulo da Escola Naval.
Flickr

Percorro as instalações escolares acompanhado pelo Oficial de serviço, que leva a sua gentileza ao ponto de tentar explicar-me o funcionamento da aparelhagem complicada que me rodeia.

Tudo aqui é de um asseio irrepreensível e o ambiente das aulas alegre e cheio de claridade. 

Visito a Oficina Escolar e de Reparações, o Gimnásio e as instalações dos Cadetes, atravesso um campo de "foot-ball' e entro no edifício do Comando, obra dos arquitectos Rebelo de Andrade, que conseguiram sugerir nos volumes da construção reminiscências de arquitectura náutica de feliz equilíbrio. 

O "hall", pavimentado de mosaicos de lioz, é encimado por uma ampla galeria, que corre nas quatro faces, assente em colunas de cantaria de Sintra. 

A fachada do edifício de comando da Escola Naval — Foto Mário Novais.
Flickr

No piso inferior do edifício alinham-se as salas de aula, pedagógicamente apetrechadas com o material indispensável para um ensino que necessita, a cada passo, de se apoiar no próprio objecto. 

Mostram-me, entre outras, as aulas de torpedos, motores, máquinas, balística e electricidade; subo ao primeiro andar, onde se encontra o gabinete do Comandante, mobilado com um bom gôsto que me surpreende, dou ainda um olhar pela Sala do Conselho, apeteço, por um pouco, a simpática solidão da Biblioteca e galgo a escada de caracol que me leva ao terraço, do qual descubro um admirável panorama, diluído na lonjura em que se projecta. 

Do meu lado direito descortino o castelo de Palmela e o dorso violeta da Serra da Arrábida; à esquerda, alonga-se um exíguo promontório, onde se aninham as vilas de Cacilhas e de Almada e, na quieta luminosidade do entardecer, avulta, como pano de fundo, a cidade de Lisboa, reflectida na translucidez irisada do Tejo. 

Vista do Arsenal do Alfeite, Mário Novais.
Flickr

Deixo o corpo central do edifício com a sua Ponte de Comando, Tôrre da Bússola, Casa da Pilotagem e outras dependências; espreito o pinhal rumorejante e adivinho ali a melodia doce de um melro, que parece suspensa no esmorecer da luz. 

Resta-me, apenas, como final da viagem, a colheita de alguns elementos, que me disponho a adquirir, sôbre a organização e funcionamento do Arsenal edificado beira-rio, em frente da Escola de Marinha. 

O poderoso guindastre do Arsenal.
Panorama n° 4, setembro de 1941

Compôem-no um corpo de vários edifícios; porém, sómente dois são obra dos arquitectos irmãos Rebelo de Andrade, pertencendo os restantes a construções anteriores. 

Da actividade das suas oficinas, fala, mais do que que tudo, o Relatório do ano de 1940, publicado há pouco. Dêle extraímos os dados estatísticos que se nos afiguram de maior importância. 

Assim, para os que se interessem pela questão, diremos que em 1940 foi construído no Arsenal do Alfeite o novo navio hidrográfico "D. João de Castro", ultimada a construção de duas lanchas de fiscalização, começada a construção de outras duas, de um batelão, dois vapores arrastões, seis embarcações menores e duas vedetas. 

Uma expressiva imagem do Arsenal do Alfeite.
Panorama n° 4, setembro de 1941

Quanto ao trabalho de reparações e de beneficiações, destaca-se o efectuado no contratorpedeiro "Lima" e na canhoneira "Ibo", realizado com a melhor das proficiências técnicas. 

Do exposto no referido Relatório conclui-se que o movimento diário do Arsenal, no capítulo de consertos e melhoramentos, foi, no ano findo, de seis navios com o total de 5.550 toneladas, perfazendo o pessoal mobilizado no serviço, o elevado número de 1.474 pessoas. 

As amplas oficinas do Arsenal — Foto Mário Novais.
Panorama n° 4, setembro de 1941

Julgamos estas notas suficientes para, através delas, se poder calcular o enorme e disciplinado esfôrço que representa a renovação das nossas indústrias navais, superiormente orientadas. Basta ir ao Alfeite e procurar ver, para disso trazermos a certeza. (1)


(1) Panorama n° 4, setembro de 1941

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Mais informação:
Flickr (FCG), Mário Novais

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