sábado, 31 de maio de 2014

O rei moço

Por 1858 D. Pedro V frequentava muito a casa de Alexandre Herculano [...]

Alexandre Herculano (1810-1877)
Imagem: Wikimedia Commons

D. Pedro V perguntava — usamos do termo, vulgar nas nossas províncias — a miude a casa da Ajuda. A voz de Stentor do creado acudia, cá de dentro, bradando: — Quem é?

A um submisso: — Faz favor — abria estrepitosamente, dava com El-Rei, e ficava varado!

D. Pedro V perguntava:

— O sr. Herculano está?

O creado, mudo, curvava-se até ao chão, n'uma vénia affirmativa. O monarcha seguia pelo corredor, levantava o fecho e dizia:

— Dá licença? Seja Deus n'esta casa.

Herculano recebia-o como estava; ás vezes, em trajo frasqueiro. Também lh'o censuraram. Queriam, provavelmente, que dissesse ao principe:

— Espere Vossa Magestade, que eu vou pôr casaca e lenço branco.

Não tinha esse mau gosto. D. Pedro V entrava. A conversação prolongava-se. Umas vezes tratavam de coisas graves, e outras de mais espairecidas, anecdotas politicas do dia, lettras, artes. El-Rei recitava versos, que lhe haviam agradado e tomara de cór, com a sua memoria bragantina.

De tudo tínhamos nós noticia depois, porque D. Pedro ficava só com Alexandre Herculano.

D. Pedro V estava então na adolescência. Parece-me agora vel-o. Sempre com a sua farda e a sua espada, como hoje trazem os militares. Alto, distinctissimo, sereno, parecia envolvel-o um nimbo refulgente de bondade! As pupillas nadando no esmalte das scleroticas. Cútis finissima, na transparência da pelle contavam-se-lhe as veias azuladas. Cabello loiro acendrado, caindo em natural desalinho sobre a testa e as fontes. Bocca graciosamente recortada, e vermelha. O beiço inferior um pouco grosso, mas não belfo, como o dos Braganças. A sua expressão habitual era meditativa. Quando sorria, a primavera ridente da mocidade varria as nuvens, que, não raro, toldavam o coração do principe.

D. Pedro V, William Corden sobre original de Winterhalter.
Imagem: Palácio Nacional da Ajuda

D. Pedro V vinha dos esplendores do Paço. O piso suave das alcatifas, a curvatura dos fâmulos — grandes e pequenos, o ambiente morno das lisonjas, ainda dos mais honestos, todos os thuribulos, cujo incenso vicia o ar e entontece a cabeça, haviam de exercer no Rei a sua acção mórbida. Advertido, pela lição dos livros, caracter recto e razão solida, fugia d'elles? Talvez.

A pé e só, saía das Necessidades. Entrava no zambujal da Tapada, então bravia, como a caça de pello e de penna, que abundava por aquelles covões e chapadas. Os moinhos, tão pittorescos, uns agrupados, outros, aqui e além, pelos cimos flexuosos da serra, viravam as aspas brancas ao norte largo, girando, girando, para moer o trigo, que havia de alimentar o povo. Esses moinhos tinham servido de fortalezas para sacudir o despotismo, e firmar na cabeça de sua mãe a coroa liberal, que elle herdara. E o príncipe passava, aspirando a aragem acre e salubre. Vinha visitar o homem, que, traçando os annaes da pátria, desenhara a figura de seus avós. O Rei identificava-se com a natureza e tornava-se humano. Os copados zambujeiros, ramalhando, varriam-lhe do espirito os bálsamos palacianos. Só, e distante do sólio como rei, sentia-se maior como homem! N'aquella hora breve, solitária e folgada, vivia séculos na historia! O pensamento, ás vezes, é fardo acabrunhador, como disse o malfadado Millevoye. É preciso sacudil-o [...]

Acertava, ou talvez fosse propositadamente, vir o rei n 'alguns sabbados. As quatro, em ponto, levantava-se para sair. Sabia que n'esses dias, a essa hora, Herculano contava, á mesa, com os seus amigos. Seguindo pelo corredor, reparando na porta da casa de jantar, e fitando em Herculano um olhar significativo, disse-lhe, uma vez:

— Este officio de rei tem coisas bem desagradáveis!

Naturalmente os seus desejos seriam entrar, elle, moço, intelligente, amante das lettras, e tomar parte na convivência de rapazes que, na maioria, eram a flor dos talentos de Portugal!

Correu tempo. D. Pedro V casou. O noivado foi breve, porém luminoso, porque se amavam e entendiam aquellas duas almas!

Um dia veio a nuvem, súbita e temerosa!

Se a purpura se conservava sobre os hombros, o lucto da viuvez cobriu-lhe o coração até á morte! Nem os negócios públicos, nem o Curso Superior, que fundara com tanto gosto, lhe tiravam do peito aquella nódoa!

Rainha D. Estefânia, Karl Ferdinand Sohn, 1860.
Imagem: Palácio Nacional da Ajuda

Para distrahir os irmãos, fez a viagem ao Alemtejo. Viagem fatal!

N'um dia de inverno — tenebroso dia — o bronze, ululante nas torres dos templos da cidade, e o canhão, ribombando nas fortalezas, annunciaram a morte do Rei á cidade consternada! A dor foi sincera e violenta, a ponto de romper em tumultos!

"Ao despotismo da morte respondeu a anarchia da dor!" disse José Estevão.

O préstito fúnebre, sem apparatos nem pompas, foi o mais tocante e imponente que se tem dado em Portugal. Nem uma carruagem! Das Necessidades a S. Vicente, duas renques de povo, firmes e circumspectas, como se fossem alas de militares disciplinados!

A morte de D. Pedro V tomou proporções de catastrophe nacional. O povo tinha a intuição do poder intellectual, do saber, da rectidão de caracter e da bondade do príncipe. Amava o e respeitava-o; sabia que no throno estava o seu amigo e protector.

Os políticos — politicos de todas as cores não andavam de boa avença com elle. A um óbice que o monarcha lhes puzesse, murmuravam, quando nos jornaes não declaravam:

— Governo pessoal, governo pessoal!

Os politicos pelam-se por elle, mas quando o rei se torna instrumento passivo dos seus desígnios e ambições. D. Pedro V não era para isso. Estava alli um homem. Como supremo magistrado do paiz, conhecia as suas obrigações; não exorbitava d'ellas, porém não admittia que lh'as invadissem. Tinha o sentimento da justiça e da moralidade em grau elevado, e via o caminho que isto ia levando. Não concedia nada, que fosse além do legitimo, nem pedia coisa alguma aos ministros. Que os reis também pedem!

Esta rigidez não se amoldava aos meneios e voltas da politica. A morte, ás vezes, é resgatadora de infelizes. Elle, cora o seu caracter, contra a onda das coisas, n'esta terra que havia de ser, senão um desgraçado! Morreu a tempo. Não poude ver as lagrimas que provocou a sua morte; mas sabia que era amado.

Para os que o conheceram, a figura de D. Pedro V tem o que quer que seja de phantastico. A sua belleza, o seu valor á cabeceira dos pobresinhos moribundos; o dia das núpcias; o véu da noiva e os botões da laranjeira, envoltos já nos crepes e nos goivos do sepulcro; a Rainha morta; elle, no Paço, com os irmãos, e a morte a pairar em roda dos Infantes! o Príncipe herdeiro, coração bondoso, intelligencia viva, porém tão juvenil ainda, tão inexperiente dos homens, das coisas, da politica, por esses mares fora; o paiz; o futuro; as primeiras arremettidas da febre, com que se teve ainda de pé; as visões, prologo da agonia; aquella figura apollinea, refulgente, envolta n'uma nuvem densa; o baquear na terra!...

[...] uma das referências unanimemente mencionada pelos autores, é a provável data da construção do Palácio Real do Alfeite, em 1758, por D. Pedro III, filho de D. João V e marido de D. Maria I.

Real quinta e residência do Alfeite, 1851.
Imagem: António Silva Tullio, A Semana.

Já no decorrer do século XIX, o Palácio Real do Alfeite foi, novamente, objecto de uma intervenção de remodelação e restauro, merecedora de registo pela sua magnitude, extensão e visão, transformando um edifício humilde, rudimentar, sem  ornatos, num imóvel arquitectónicamente equilibrado, esteticamente agradável, simples mas de linguagem imponente.

Esta intervenção esteve a cargo do arquitecto da Casa Real Joaquim Possidónio da Silva, realizada por ordem de D. Pedro V, e define exteriormente a actual configuração do palácio.

D. Pedro V (n. 1837 m. 1861), de seu nome completo Pedro de Alcântara Maria Fernando Miguel Rafael Gonzaga Xavier João António Leopoldo Victor Francisco de Assis Júlio Amélio de Bragança, Bourbon e Saxe Coburgo Gotha, cognominado O Esperançoso, O Bem-Amado ou O Muito Amado, foi Rei de
Portugal de 1853 a 1861.

"Em 1857, D. Pedro V fez grandes melhoramentos na quinta e mandou construir um novo palácio, mais confortável e de traça mais elegante – que ainda se mantém – para substituir o antigo".
in Mendes, José Agostinho de Sousa, A Quinta do Alfeite, Revista da Armada, 135, Marinha de Guerra Portuguesa, Lisboa, 1982.


Almada, Palácio Real do Alfeite, Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 18, década de 1900
Imagem: Delcampe

"No local do palácio sempre ali existiu um edifício com uma ponte de cais e acesso, que foi reformulado em 1837, com melhores condições para albergar a Família Real, mas as instalações que hoje conhecemos resultam da transformação mandada fazer por D. Pedro V, em 1857, de acordo com um desenho do arquitecto Possidónio da Silva".

in Matos, Semedo de, 150 Anos da chegada a Portugal da Rainha Dona Estefânia, Revista da Armada, 422, Marinha de Guerra Portuguesa, Lisboa, 2008.

Almada,  Praia do Alfeite, Paulo Emílio Guedes & Saraiva 19, década de 1900
Imagem: Delcampe

"[…] D. Pedro V fez importantes obras na quinta do Alfeite e construiu um novo palácio. As salas são elegantes e bem mobiladas, a escadaria magnífica, as pinturas dos tectos são deveras artísticas e a quinta tem bellezas naturaes, existindo […] por vezes Suas Magestades vão de visita ao Alfeite, repousam alguns momentos no palácio, merendam na quinta, embarcando depois no magnifico cães junto do palácio".

in O Paço Real do Alfeite, Illustração Portugueza, Empreza do Jornal O Século, Lisboa, Outubro 1905.

Almada,  Largo da Quinta Real do Alfeite, Paulo Emílio Guedes & Saraiva 17, década de 1900
Imagem: Delcampe

[…] Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Pedro V acaba de mandar construir n’aquella quinta uma nova residência, mais confortável e elegante do que o antigo real casarão, escoltado de pontales, que lá havia. È architecto da obra, o da casa real, Joaquim Possidónio Narciso da Silva” [...]

in Alfeite, Archivo Pitoresco, vol. I, Typ. de Castro Irmão, Lisboa, 1858.

"A aristocracia desse tempo era pouco instruída, de mentalidade antiquada, muito arreigada às suas prerrogativas e ambições pessoas e ignorante do progresso realizado além fronteiras com o advento da nova era industrial. D. Pedro V dotado de viva inteligência e de notável formação moral e intelectual era muito estudioso, metódico e possuidor de invulgares qualidades de trabalho" […]
in Revista de Marinha, 390, Marinha de Guerra Portuguesa, Lisboa, 1950.

"D’entre as quintas mais notáveis do termo d’Almada, faremos unicamente menção das duas que pertencem á família real: a do Alfeite, que é da coroa, com jardim e grande matta abundante de caça, e agora aformoseada com un lindo palácio de campo, no gosto inglez, mandado edificar por el-rei o Senhor D. Pedro V […]"

in Barbosa, Inácio de Vilhena, As Cidades e Villas da Monarchia Portugueza que teem Brasão d’Armas, Lisboa, Typographia do Panorama, Lisboa, 1860.


Bibliografia: Pereira, Susana Maria Lopes Quaresma e, O palácio real do Alfeite: da fundação à contemporaneidade, século XVIII-XX: percursos e funcionalidades, 2009, Universidade de Lisboa.

Paço Real do Alfeite, Aguarela, Enrique Casanova
Imagem: Cabral Moncada Leilões

E pelas mesmas ruas, por onde elle passava, a cavallo, todos os dias, adolescente e confiado no porvir, o saimento muito vagaroso, por entre o povo todo de negro, n'uma tarde fria, húmida, sinistra, pela via dolorosa ; longa . . . longa .. . que não tinha fim!...

E n'este turbilhão de bailada allemã, que, ainda hoje, nós vemos passar D. Pedro V! [...]

Alexandre Herculano, Rebello da Silva, Sant'Anna e Vasconcellos, e eu, seguimos das Necessidades até S. Vicente.

Funeral de D. Pedro V, novembro 1861.
The Illustrated London News, gravura do esquisso de P. Anstell, 1862.
Imagem: Real Arquivo Digital no Facebook

Caia a noite, quando o Rei, no seu grande esquife, todo coberto de crepes, entrou o âmbito da egreja.

Foi a primeira vez que vi Alexandre Herculano chorar como uma creança! [...] (1) 


Medalha de D. Pedro V.
Inauguração do Palácio de Cristal do Porto em 8 de Setembro de 1861.
Imagem: Ebay

D. Pedro V nasceu a 16 de setembro de 1837.

Ascendeu ao trono em 1853, tinha 16 anos.

Casou em 1858 com a princesa Estefânia de Hohenzollern-Sigmaringen, que faleceria no ano seguinte.

Em 1855 presidiu à inauguração do primeiro telégrafo eléctrico no país.

Inaugurou o caminho de ferro entre Lisboa e Carregado em 1856.

Criou e subsidiou o Curso Superior de Letras em 1859.

Fundou hospitais e outras instituições, entre os quais, correspondendo a um pedido de sua esposa entretanto falecida, o Hospital de Dona Estefânia.

Em 3 de setembro 1861, inaugurou os trabalhos de construção do Palácio de Cristal do Porto.

D. Pedro V faleceu a 11 de novembro de 1861, tinha 24 anos.

O Palácio de Cristal do Porto foi destruído em 1951.

Medalha de D. Pedro V.
Inauguração do Palácio de Cristal do Porto em 8 de Setembro de 1861.
Imagem: Ebay


(1) Bulhão Pato, Raimundo António de, Memórias, Vol. II, 1894, Typ. da Academia Real das Sciencias, Lisboa.

Leitura adicional:
Vilhena
, Julio de, D. Pedro V e o seu reinado, Vol. I, Lisboa, Typographia do Panorama, Lisboa, 1921.
Vilhena, Julio de, D. Pedro V e o seu reinado, Vol. II, Lisboa, Typographia do Panorama, Lisboa, 1921.
Vilhena, Julio de, D. Pedro V e o seu reinado, Suplemento I e II, Lisboa, Typographia do Panorama, Lisboa, 1921.

Sem comentários: