domingo, 4 de janeiro de 2015

Kong Haakon VII na Lisnave

Um fim de tarde ao largo da costa ocidental de África. O último tripulante acaba de deixar o convés e todos a bordo do enorme petroleiro, 222,513 DWT, preparam-se para a noite. Então algo acontece. Uma enorme explosão — ouve-se um estrondo incrível. Pedaços de aço voam pelo ar e as chamas elevam-se a 300 metros no céu da noite.

Kong Haakon VII, 219000 tdw.
Imagem: Hank Williams Sr. Listings

O milagre da noite, de segunda feira 29 de dezembro 1969, é que ninguém — nem uma única pessoa — é morto ou ferido na explosão. Além dos membros da tripulação do Kong Haakon VII, propriedade de Hilmar Reksten, havia também mulheres e crianças a bordo.

Os próximos acontecimentos testemunham a qualificação dos marinheiros que ajudam a prevenir que a grave extensão dos danos no navio se torne ainda pior. Enquanto as chamas se agitam apenas a cinco metros dos seus corpos, o oficial chefe consegue fechar a escotilha do tanque de residuos localizado entre o tanque 4 e a casa das bombas.

Devido à existência da água de lastro, a explosão, em vez de se propagar ao comprimento, foi forçada verticalmente. Isto permite ao Kong Haakon VII manter a quase totalidade da sua força longitudinal. O navio está operacional e isso é fantástico.

Os tripulantes abandonam o navio nos salva vidas, algo que apenas pode ser feito quando o navio perde velocidade suficiente para permitir a sua descida, o que demorou quase uma hora. Uma hora no convés — com um mar de chamas directamente adjacente. O metal retorcido — inclinado para cima como a tampa de uma lata de sardinhas — serve de escudo, protegendo do calor.

Kong Haakon VII, antes de ser seccionado nos estaleiros da Lisnave, 1970.
Imagem: Kombuispraat

A partir dos salva vidas, os tripulantes observam como as chamas se reduzem gradualmente e acabam por se extinguir na zona onde ocorreu a explosão. Isto aconteceu, provavelmente, devido à limpeza do tanque central n° 4. O convés sobre a secção central do super petroleiro desapareceu como que arrancada.

Há partes de aço desfeito penduradas sobre as partes laterais do navio. Passado pouco tempo, decide-se que metade da tripulação pode regressar a bordo do navio e por o motor em funcionamento. O navio dirige-se a Monróvia na Libéria
 pelos seus próprios meios. O resto da tripulação é regatada dos salva vidas por um navio italiano que se encontra na área.

À luz do dia, os estragos, enormes e massivos, são quase impossíveis de compreender. A maioria dos observadores vê o navio como uma perda total. Mas é aí que as coisas dão uma reviravolta. O Kong Haakon VII está pronto a navegar de novo 11 meses depois — graças à inteligência, coragem e enorme esforços de várias pessoas nos diversos níveis de intervenção.

Todavia, pôr o Kong Haakon VII nas condições que o permitam navegar até um estaleiro com as competências que o permitam reparar, é um trabalho muito exigente. A estrutura do casco necessita ser reforçada.

T/T Kong Haakon VII reparado no estaleiro da Lisnave, Lisboa [Margueira], em 1970, após a explosão ao largo da África do Sul [Libéria].
Imagem: Wikipedia

Um grupo de peritos formado por representantes da Bergen Skipsassuranseforening (agora Norwegian Hull Club), Hilmar Reksten — o proprietário do navio, a Det Norske Veritas, o estaleiro Lisnave em Portugal e o SA Office em Antwerp celebram uma espécia de véspera de Ano Novo na capital da Libéria — antes de irem a bordo do navio acidentado, na manhã do dia de Ano Novo de 1970. 

A Skipsassuranseforening [seguradora em Bergen, Noruega] nomeou Ulrik Qvale como seu nono supervisor. Durante uma palestra para a SCUA [Scandinavian Underwriters Agency] em Lisboa, 30 anos após o acidente, ele escreve o seguinte a propósito do que o grupo viu quando foi a bordo: "Fomos a bordo às 10:30 e tivemos o choque das nossas vidas. Tomámos algum tempo para nos acalmarmos e ser capaz de começar a registar os danos". Rápidamente ficou óbvio que um seria necessário um grande reforço de aço antes que o navio pudesse navegar para o estaleiro para ser reparado. Partindo do princípio de que seria para ser reparado [...]

Kong Haakon chegou ao estaleiro de Lisboa a 2 de abril de 1970 — 3 meses depois da explosão.
O longo processo de oito meses de reparação poderia começar após semanas de limpezas.
Imagem: Norwegian Hull Club

Uma vez na Lisnave, uma limpeza completa do navio teve que ser feita antes que este pudesse ser dividido em três e antes que os verdadeiros trabalhos de reparação podessem ter início. A secção central do navio, severamente danificada, foi colocada na doca de construção, enquanto que as outras duas secções permaneceram acostadas ao cais de reparação.

Kong Haakon VII, Lisnave, Margueira, 1970.
Imagem: ed. desc.

Antonio Machado Lopes e Cornelis Hordijk do estaleiro da Lisnave geriram o intricado projeto de reconstrução. No que diz respeito ao jovem holandês de 25 anos, Cornelis Hordijk, o periodo de 8 meses seguinte virá a representar o ponto alto de sua carreira. Um projeto de proporções gigantescas que ele nunca irá esquecer. Hordijk trabalha no projeto do navio 24 horas por dia juntamente com milhares de trabalhadores portugueses. Todos compreendem que este é um importante projecto de reparação.

Kong Haakon VII no Tejo após a reparação na Lisnave (detalhe), 1970.
Imagem: ed. desc.

Um projeto de reparação com significado para o futuro, que era colocar a Lisnave e Portugal no mapa, e não só na Europa mas através de todo o mundo do transporte naval. Era como se estivesse a trabalhar para a sua nação e para o seu futuro, para além de trabalhar para o proprietário do navio e as seguradoras que acabariam por pagar as contas [...] (1)


(1) Net work — Norwegian Hull Club

5 comentários:

Unknown disse...

linda historia..

Rui Granadeiro disse...

Obrigado José Silva

MGomes disse...

Um excelente resumo da que foi, em pé de igualdade com a do Universe Patriot, das grandes reparações feitas pela Lisnave no seus Estaleiros de Almada.

Rui Granadeiro disse...

Obrigado Manuel Gomes,

A reparação do Universe Patriot foi efectuada na doca 13. Um know-how que não soube, ou não se quis, progredir para se adaptar a futuras realidades.

Um abraço

Unknown disse...

Espantosa história, que me recorda tempos de adolescência.
Meu pai, Fernando Gorjão de Faria (empresa TOPOTÉCNICA, topografia, ex Praça da Renovação, Almada) foi um dos portugueses, com as suas equipas, ligados à reconstrução/remontagem deste navio, trabalhando, por debaixo dele, com alinhamentos topográficos para garantir a correcta montagem alinhada das secções. Tarefa nada fácil. Com os meus quase 19 anos, foi ver, espantado, esse trabalho em doca sêca.
Parabéns por este blogue.
Luis Faria, Lagos (topógrafo)