segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Romântico Porto Brandão

Ninguém me há de acreditar a história da quarta mulher. Quer creiam, quer não, ela ai vai com pouca arte, a ver se a sua mesma desnudez a faz menos incrível.

Lisbon from Porto Brandão, James Holland, 1845.
Imagem: BBC Your Paintings

Fui um dia de agosto a Porto Brandão, onde estava a banhos um meu amigo. Numa quinta para lá da encosta houve uma reunião de famílias de Lisboa, à qual fui convidado. O meu amigo apresentou-me a um cavalheiro, que me tomou o braço e me apresentou a algumas senhoras, todas galantes, palreiras e doutoras em Paulo de Kock. 

Pedi miúdos esclarecimentos acerca de todas, e particularmente da mais bonita e modesta. O cavalheiro de todas disse mal, mal, porém, que eu indultei cordialmente, defeitos que são enfeites, vícios que alindam as formosas e denigrem as feias. O crime de todas era a casquilhice, que o leitor pode, se quiser, traduzir para coquetterie. Amavam toda a gente, segundo o informador. Fiquei satisfeito, pensando que o amarem elas toda a gente era boa probabilidade para eu ser amado. Eu não queria mais nada.

Camilo Castelo Branco (1825 -1890).

Languiram em doce ternura meus olhos, fitos na mais amável das quatro. Algumas vezes nossas vistas se encontraram, e disseram profundos mistérios da alma. Fugi outras vezes da sala e fui a uma varanda, donde se ouvia o bramido do oceano, casar as melodias do meu amor com as dissonâncias formidolosas do estrugir das ondas. A lua prateava-me a testa, em que o sangue, aquecido no coração, subia em arquejos daquela poesia, que não sai em rimas, e enlouquece, se a paixão a não desafoga em suspiros. Aquilo é que era!

Ao romper de alva, vi que um rancho de meninas desciam ao jardim e colhiam flores. A minha amada ficou à janela conversando com senhoras idosas. "Tragam-me a mim uma rosa de musgo", disse ela às amigas. E as amigas voltaram sem a rosa. Desci ao jardim, colhi duas rosas aljofradas das lágrimas da aurora, pedi licença para lhes oferecer, e disse: "Não as enxuguei, para não privar as florinhas das carícias de um anjo."

Porto Brandão, à esquerda do Tejo.
Imagem: Ateneu Livros

Eu queria comunicar a exuberância da minha ventura, mas tive sempre para mim que a felicidade quer-se recatada para não suscitar invejas: é ela como a fina essência das flores destiladas, que perde o aroma, destapado o cristal que a encerra. Não contei nada ao meu amigo; simulei até desapego das mulheres mais belas do baile, e da preferida nem se quer falei.

Este meu dito foi celebrado em Porto Brandão [...] (1)


(1) Castelo Branco, Camilo, Coração, cabeça e estômago, Lisboa, Publicações Europa América, 1988 [1.a ed. 1862]

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