CESTEIRO QUE FAZ UM CESTO
Real quinta e residência do Alfeite, 1851. Imagem: António Silva Tullio, A Semana. |
Estava um dia Antão Diniz discorrendo com Luiz Franco na officina de tanoeiro de Jeronymo sobre a morte desastrada de Pedro Marques, quando foram interrompidos pela chegada de um campino, que perguntou por Diniz e lhe entregou uma carta, partindo logo tão apressadamente na direcção do Alfeite, que não deu tempo a que lhe tizessem perguntas.
A carta era escripta de Santarem a D. Francisca pela Infanta D. Maria d'Assumpção, que para ali se tinha retirado em companhia de seus irmãos.
Tinha a Infanta alguns annos antes comprado por intermedio de Diniz uma grande casa em Almada com um bello terreno, a fim de ahi estabelecer um collegio de educação de meninos debaixo da administração de D. Francisca, que attrahira para a sua terra as vistas beneficentes da Infanta; mas tendo-se isto divulgado, levantaram-se tantas intrigas de padres, freiras, e senhoras da alta nobreza, influindo todos para que se dirigissem a outras aplicações os fundos destinados para aquella instituição, que a Infanta hesitára, e nada se tinha feito.
Existia portanto só a casa e o terreno para o collegio, e n'esta acquisição gastara a Infanta uma somma não pequena.
D. Francisca e Diniz mandaram chamar Franco e Jeronymo, e estiveram fazendo seus entes de razão sobre os motivos por que a Infanta mandava vender a casa, e que ella não dava na sua carta; concluindo todos que S. A., caridosa como era, desejava gastar esse dinheiro em soccorrer as immensas miserias, que eram natural consequencia de se achar um consideravel exercito em mingoa de toda a sorte de recursos.
Como uma ordem da Infanta era para D. Francisca e Antão Diniz coisa que se devia cumprir immediatamente, trataram de ver se alguem na Outra Banda ficava com a propriedade, cujos titulos paravam na mão de Diniz, e não o podendo conseguir ali, resolveram residir em Lisboa por algum tempo, deixando no entretanto a sua casa do Caramujo encarregada a Luiz Franco, a quem devia coadjuvar o velho Jeronymo e Espanta-maridos.
Em consequencia, Antão Diniz com a familia foi habitar em casa de.um seu amigo em Lisboa no Alto das Chagas, levando em sua companhia João Chrysostomo, que deixou a aula entregue ao seu ajudante.
Ramalhete de Lisboa, Carlos Botelho, 1935. Imagem: Wikipédia |
Conseguiu emfim Diniz vender a casa, e tratou de enviar á Infanta o producto da venda. Mas como houvesse difficuldade nas communicações por estarem os partidos belligerantes no maior grau de exaltação, e Lisboa cercada, Antão Diniz assentou em remetter o dinheiro por meio de uma letra sobre um negociante de Santarem, sendo esta levada por pessoa de confiança, e escolheu João Chrysostomo para ser o portador.
Partiu Chrysostomo do Alto das Chagas, vestido á saloia como combinára com um seu antigo discipulo, commandante do 5.° batalhão fixo, que a esse tempo estava de guarnição na linha de fortificacões que da Penha de Franca se dirigia ao Alto de S. João, e levando comsigo além da carta para a Infanta com a primeira via da letra, mais duas cartas, uma da superiora do convento da Estrella; e outra de uma criada do paço, que mais não quiz D. Francisca que elle levasse, com receio de algum compromettimento; e tudo assegurava que passaria as linhas sem inconveniente, tanto mais quanto não era de politica nem das coisas da guerra que as cartas tratavam; mas quiz a sua má estrella, que indo pelo Terreiro do Trigo, Josephina passasse ao mesmo tempo recolhendo-se para casa, e o reconhecesse, apezar do seu disfarce.
Então Chrysostomo julgou prudente subir e declarar a Josephina o que se passava, certo de que ella o não trahiria.
Entrando Josephina em casa com Chrysostomo, disse-lhe a criada que estava lá Botelho no jardim, e não querendo Josephina que Botelho visse Chrysostomo com fato de saloio, fel-o vestir o fato domingueiro do criado, e assim vestido e ordenando ella á criada que não participasse a Botelho a sua chegada, foram para a sala, e então lhe contou Chrysostomo a missão de que ia encarregado, recommendando-lhe toda, a discrição, vista a importancia do caso.
Comtudo, como nem sempre se realisa o que nós queremos, a criada esqueceu-se de dar aviso de quando Botelho viesse do jardim, e este entrando em casa e sentindo a voz de Chrysostomo, pôs-se a escutar e ouviu toda a narração, pelo que ficou inteirado do que se passava, e voltou ao jardim sem ter sido percebido.
Tornando depois e apresentando-se na sala, mandou Josephina por o jantar, e acabado elle, Botelho a pretexto de ter que escrever passou a um gabinete, e Chrysostomo com Josephina ao jardim.
Bem teria andado Chrysostomo se partisse logo depois do jantar; mas sendo muito obsequiado por Josephina, e tendo bebido de mais, ao que não era costumado, descuidou-se um pouco dos seus deveres para gosar da companhia da interessante mulata, que ha tempos não via, e a quem sempre quizera muito.
No entretanto meditava Botelho uma grande maldade, e o mesmo foi concebel-a que pôl-a por obra.
Foi-se á algibeira da jaqueta de Chrysostomo, tirou a carta de D. Francisca, abriu-a cautellosamente, e ahi escreveu o seguintes n'uma das margens: "O logar mais fraco da linha è o alto de S. João; está guarnecido só por um batalhão fixo e mal artilhado: por ali é que se deve atacar e quanto antes."
Feito isto, tornou a fechar a carta e metteu-a no bolso da jaqueta de Chrysostomo. Depois despediu-se d'elle e de Josephina, foi direito á secretaria da guerra, e vendo Agostinho José Freire [ministro da Guerra nomeado por D. Pedro IV] com uns papeis diante de si para os começar a ler, entreteve-o um instante, pondo-lhe entre elles com todo o cuidado um bilhetinho concebido n'estes termos:
"É necessario já já mudar a guarnição da linha que vae do alto da Penha de França ao de S. João. Vae n'isto a segurança da capital."
Passados momentos tinha o ministro lido o bilhete, e dava ordem não só a render a guarnição, mas a mandar postar uma fragata no rio em frente de Santa Apolonia, prevenindo assim o que podesse acontecer.
Entretanto Chrysostomo, um pouco electrisado com as bebidas, fallava a Josephina do seu antigo amor, accusando-a de se ter deixado seduzir, preferindo a triste posição de barregã de Botelho a casar com elle, que tanto a amára, pelo que havia recusado a mão de muitas meninas de boas familias da Outra-Banda; e no excesso do seu enthusiasmo teve a imprudencia de dizer a Josephina, que Botelho não a amava, que pedira a mão de Mathilde, e que lhe fora recusada, não só por Mathilde gostar muito de Franco, mas por elle Chrysostomo se ter opposto a esse casamento, sem comtudo declarar a Josephina que contára á familia de Diniz os amores de Botelho com ella.
Isto tornou furiosa a pobre mulatinha, que até ali andava cega por Botelho, e não sabia a peça que elle era.
Despedido Chrysostomo de Josephina, foi-se a caminho da Penha de França, justamente quando já uma força do 3.° batalhão fixo, alguma tropa de linha, e parte de um batalhão movel tinham rendido o corpo de que era commandante o seu antigo discipulo, sem haver tempo de este prevenir a Chrysostomo.
Chegando pois Chrysostomo á Penha, deu com alguns soldados do batalhão fixo que para ali fora render o outro, e como os uniformes muito se parecessem. e elle estivesse algum tanto estonteado, tomou-os pelos do batalhão do seu discípulo, e pediu-lhes que o apresentassem ao commandante.
Effectivamente foi logo levado á presença d'elle. Mas qual não seria o seu espanto quando não viu o seu amigo, mas outro official, que rodeado dos seus subalternos lhe começou a fazer diversas perguntas?
Como ficasse enleiado, e não respondesse coherente, tornou-se suspeito, e mandaram-n'o apalpar. Apalpando-o, acharam-lhe as cartas, abriram-n'as, e leram a perfida nota que Botelho ahi havia introduzido.
Então começaram logo a chamar-lhe traidor, e em continente a soldadesca exaltando-se, apossou-se do pobre homem, que estava pasmado, e não sabia defender-se nem explicar o que acontecia, levaram-n'o para o campo, e sem que alguns officiaes que se compadeciam d'elle os podessem conter, ahi mesmo o fuzilaram; depois do que foram remettidas para o general as cartas que lhe tinham sido aprehendidas.
APDG, Sketches of portuguese life, manners, costume and character, Execução militar, 1826. Imagem: Internet Archive |
Assim morreu o pobre Chrysostomo, digno de melhor sorte, victima de uma traição tramada com infernal habilidade, e a que Botelho chamava estratagema diplomatico.
Em quanto esta scena de dôr se passava no Alto da Penha de França, Botelho partia da secretaria da guerra para casa de Josephina, e entrando ali todo cabisbaixo, foi mal recebido. pela mulata, que estava como uma vibora, o que elle muito estranhou.
— Botelho! lhe diz a mulata com os olhos fuzilando fogo. Sacrifiquei-te o mais que uma mulher pode sacrificar a um homem — a honra. Troquei a mão que me offerecia o pobre Chrysostomo, meu irmão colaço [irmão de leite] , pelo teu amor falso e fementido [enganoso, pérfido, infiel]. Seduziste-me, e ás minhas lagrimas respondeste com a promessa de casamento. Já lá vão bastantes annos, e o sr. Botelho vive comigo em concubinagem, sem nenhuma tenção de cumprir a sua palavra!
— Hei-de cumpril-a, respondeu Botelho, desasocegado com o ar solemne e irado de Josephina. Mas nunca me fallaste com esse tom. De que provem similhante exaltação?
— De que provem? Ouve! Dizes que has de cumprir a tua promessa. Mais de uma vez m'o tens repetido. Jurastel-o mesmo durante a agonia de minha infeliz mãe, que levou para a sepultura o desgosto de não ver casada sua filha. Mas quem pede a mão da filha de Antão Diniz, do Caramujo, não tem de certo tenção de casar com Josephina Lopes.
Um raio que caísse aos pés de Botelho não o deixaria mais assombrado do que elle ficou ao ouvir estas palavras.
Reinou por algum tempo o silencio, em quanto que Josephina não despregava os olhos de Botelho com um furor indisivel.
— Anda aqui o sr. Chrysostomo... Ah sr. Chrysostomo! Depressa terá o premio da sua obra — disse por fim Botelho.
Josephina estremeceu com o dito do Botelho, que parecia adivinhar a commissão de que Chrysostomo fora encarregado; mas não sabendo o que Botelho tinha feito, exclamou:
— Não negas. Disseram-me pois a verdade. Mas recusaram-te... A filha de Antão Diniz ama outro. Ao menos fez-me a vontade. Quem me dera fallar a essa joven para lh'o agradecer!
— Ouve Josephina! Não o negarei. Eu quero essa joven porque é rica, preciso d'ella, mesmo porque a amo. E hade ser minha ou por força ou por vontade.
Josephina ergueu-se como uma pantera — Malvado! grita ella. E eu então... Eu a quem tu deshonraste, ficarei abandonada ?... O que será de mim... Botelho! Tu não hasde casar com a filha de Diniz. Não hasde, digo-o eu.
E a pobre Josephina toda convulsa caiu sobre a cadeira. O demonio do ciume ralava-a.
— Quem se me hade oppôr? Ella recusou-me; mas eu cá tenho os meus planos. Hei de possuil-a a todo o custo, e tu Josephina viverás comigo como até agora, e melhor ainda porque terás riquezas.
Josephina suffocava de raiva.
— Es tão malvado quanto desprezível! respondeu ella. Desprezo-te, odeio-te! Pois eu havia de consentir que o sr. Botelho casasse com outra mulher e além d'isso continuasse a viver comigo em mancebia?!... Eu tambem farei os meus planos.
— Pois sim, veremos, repondeu Botelho, e pegou no chapéo e saiu.
A mulatinha ficou sentada, abatida, com as mãos nos olhos; mas sem chorar, depois ergueu-se, e com uma serenidade diabólica foi mexer n'uma boceta, donde tirou alguns embrulhos de papel, que esteve desatando e tornando a atar, e d'entre os quaes escolheu um, pondo-o de parte e arrecadando os outros.
Silva, Avelino Amaro da, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863, 167 págs.
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