CASTIGO DO CRIME
Cova da Piedade, Arnaldo Fonseca, 1890 Imagem: Boletim do Grémio Portuguez d’Amadores Photographicos * |
Havia dias que Luiz Franco se não tirava da cabeceira da mulher de Jeronymo, que estava gravemente doente, quando uma manhã pelas dez horas chegou ao Caramujo Espanta-maridos todo esbaforido com a noticia de ter sido fusilado João Chrysostomo, e de ter sido cercada a casa de Antão Diniz, o que poz em alarme toda a população do Caramujo e da Piedade.
Fora o caso que na madrugada do dia em que Botelho caiu doente, apparecera o predio em que morava Diniz cercado por muita tropa. Depois de cercado, o commandante acompanhado do prefeito da Estremadura e de alguns ofliciaes da justiça tinham entrado na casa de Diniz, que não dormira toda a noite, assim como a sua familia, pensando na morte de Jeronymo, não podendo atinar com a causa de tão grande fatalidade, e culpando-se todos sem saberem porquê da morte do desgraçado.
O prefeito intimou a Diniz e a sua mulher ordem de prisão. D. Francisca tinha desmaiado ao ouvir tal ordem, e Diniz protestava que elle e os seus nunca se haviam mettido em coisas da lucta de D. Miguel com D. Pedro; mas á vista da carta de D. Francisca, em que estava escripto o fatal aviso, e da denuncia anonyma dada na secretaria da guerra, Diniz ia entregar-se a prisão, protestando sempre pela sua innocencia, quando Botelho, que appareceu nas Chagas como por acaso, entrou, e declarou ao prefeito diante de todos os olliciaes, que antes lhe cortariam a cabeça do que elle consentir que Diniz fosse para a prisão; que licava por fiador do accusado, e que só alguma imprudencia de Chrysostomo fora origem de tanto mal; que se retirassem as auctoridades e a tropa, que elle ia fallar ao Imperador.
Como Botelho tinha grande valimento junto dos ministros e do Imperador, bastou a sua palavra para a tropa se retirar, e logo d'ali foi ao paço, e obteve, não sem custo, que Antão Diniz ficasse em sua casa, em quanto o facto se não esclarecia, persuadindo o Imperador da lealdade de Diniz, attribuindo a Chrysostomo o aviso que na carta de D. Francisca se dava ao inimigo, e dizendo mais que naturalmente o caso se saberia por ter Chrysostomo fallado n'isso em alguma parte, do que resultára apparecer na secretaria a participação anonyma.
O Imperador, em vista das allegacões e supplicas de Botelho, tinha por fim dado, por illibado o procedimento de Diniz, e este e sua familia tinham agradecido muito a Botelho o importante serviço que lhes fizera; mas não ficaram tão exemptos de suspeita, que se deixasse de recommendar que fossem, vigiados, e muito mais depois que as forças de D. Miguel deram um furioso ataque as linhas de Lisboa, justamente pela parte indicada na carta de D. Francisca.
Ficou Botelho contentissimodo bom exito da sua maldade, porque Diniz e mais familia lhe chamavam o seu salvador, e a propria D. Mathilde lhe havia dado um grande e affectuoso abraço.
Foi depois d'isto que Botelho muito satisfeito tinha ido a casa de Josephina, e já vimos que ella lhe deu o pago que merecia.
Apenas Franco soube o que acontecera aos seus amigos, veio logo a Lisboa visitar Diniz, que lhe contou o succedido, e partiu de lá para casa de Botelho. Mas que espectaculo foi elle encontrar...
Botelho deitado na cama estorcia-se com terriveis dores; tinha os olhos encovados, uma pallidez mortal, e todos os symptomas de gravissima doença.
Fora chamado a toda a pressa um cirurgião. Este classificou a molestia de cholera formal, começou a tratal-o, e mandou que o sacramentassem. Vendo isto, Botelho que até então conservára presença de espirito, perdeu de todo as esperanças de melhora, e muito mais doloroso se lhe tornava o encarar a morte, quando começava a saborear o bom resultado do seu plano.
Principiou então a lembrar-se de Deus, e a acreditar que não era uma decepção o que seus paes lhe haviam ensinado em pequeno. Nestas circumstancías e apparecendo Franco, Botelho que o viu, e conheceu que poucos momentos lhe restavam de vida, pediu que o deixassem só com o tabellião que mandara chamar, e fez escrever a este e assignou depois uma declaração em que expunha todos os crimes que havia commettido para obter a mão de Mathilde, e em que deixava o pouco que possuia aos seus credores, a quem ainda assim não podia solver uma insignificante parte do que lhes devia.
Entrando depois as testemunhas para legalizar o documento, Botelho já em artigos de morte, pediu immensas vezes perdão a Franco, a Antão Diniz, e tambem a Josephína, que se mandára chamar, mas que não appareceu, e expirou; depois do que, aberto o testamento ou declaração, ficaram todos horrorisados da immensa perversidade d'aquelle homem, e Franco satisfeito em parte por ver que Antão Diniz ficava completamente livre da supposta culpa.
Mas agora tinha-se suscitado uma questão, e era que depois das observações de Franco sobre os vomitos e dejecções, a terrivel e rapida agonia de Botelho, e tudo o mais, elle e o outro cirurgião estavam em duvida se o mal fora cholera ou veneno.
Acrescia a circumstancia de ter o cirurgião assistente ouvido dizer a Botelho que tomara uma bebida refrigerante da propria mão de Josephina, e combinando com isto as declarações de Botelho relativamente aos ultrages que tizera á mulatinha, os dois cirurgiões desconfiaram d'ella, e estiveram para descer a analyses, a fim de se certificarem se com efleito elle morrera envenenado.
Mas, fosse ou não veneno, como a doença logo de principio se apresentam com um caracter tão desesperado que teria sido impossivel salval-o, e alem d'¡sso como elle fora um grande monstro de malvadez, viram na sua morte um castigo da Providencia, e não se importaram mais do que e de quem a teria causado.
APDG, Sketches of portuguese life, manners, costume and character, Procissão do Senhor dos Passos da Graça, 1826. Imagem: Internet Archive |
Estas desconlianças não as communicaram elles a Botelho, porque quando as tiveram já elle estava com os sentidos perdidos, e tinha entrado em agonia.
Por isso Botelho morreu sem participar das suspeitas dos dois facultativos.
Quanto a Josephina, como os cirurgiões se calaram, ninguem desconliou d'ella. Fallou-se sim na fatalidade de a não terem encontrado em casa, por haver n'aquella tarde saido a passeio com a criada; mas ninguem insistiu n'isto, porque a doença de Botelho fora de tão curta duração, que era muito natural o não ter ella podido comparecer.
Logo que Josephina soube por um criado de Botelho o que se tinha passado, e que não se attribuia a morte d'elle a envenenamento, ficou livre do susto em que andava; todavia mostrou-se muito chorosa, chegando mesmo a fingir-se doente de paixão; e quando Franco se lhe apresentou em casa a fazer indagações relativas a Chrysostomo, e a declarar-lhe o pedido de perdão de Botelho, fez tão bem o seu papel, mostrando tal habilidade, e occultando os factos que lhe não convinha explicar, que as apprehensões de Franco a respeito d'ella chegaram até a desvanecer-se, e tudo assim ficou.
Procissão Corpus Christi, Amadeo Souza-Cardoso (1887 - 1918), 1913. Imagem: CAM Fundação Calouste Gulbenkian |
Passados tempos fez-se irmã da caridade, deixando toda a sua casa á criada; e nessa vida adquiriu reputação de grande virtude, e n'ella falleceu.
Silva, Avelino Amaro da, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863, 167 págs.
Sem comentários:
Enviar um comentário