REVOLTA
Lisbon from Almada, Drawn by Lt. Col. Batty, Engraved by William Miller, 1830 |
Em a noite de 25 de agosto de 1831, calmosa e serena como são geralmente as noites d'este mez n'esta nossa terra, chegava Antão Diniz todo apressado a casa de Pedro Marques em companhia de Jeronymo.
— Que e feito d'este homem? dizia elle no patamar da escada aos seus amigos que estavam na casa, e que tinham saido a recebel-o. Venho ver se já chegou de Lisboa e nos da noticia de Franco e de Gomes.
N'isto appareceu Pedro Marques coberto com um jozésinho [capote com mangas] côr de pinhão, parte obrigada do seu traje nocturno.
A figura de Marques contrastava singularmente com a de Antão Diniz, porque era baixo, delgado, pallido, testa enrugada, nariz levemente arrebitado, e olhos pardos, pequenos e vivissimos; em quanto que Diniz era alto, gordo, avermelhado, nariz aquilino, olhos pretos, grandes e lacrimosos.
— Ora até que chegou o nosso Faria, disse Diniz com a sua voz de commando. Não tem duvida que é vossê um grande amigo. Andou por Lisboa todo o dia, importando-lhe pouco que eu desse com a cabeça pelas paredes sem saber nada dos meus rapazes.
— É verdade que a demora foi grande, respondeu Faria; mas boas são as noticias, porque nenhum mal lhes sucedeu. Os acontecimentos de hontem, meus senhores, são uma triste historia que lhes vou contar, e muito extensa. Peço-lhes que se sentem por onde acharem emquanto eu preparo um cigarro.
Pedro Marques de Faria foi buscar a charuteira, picou tabaco, fez e accendeu um cigarro com todos os toques e tempos do mais experimentado fumista, e começou n'estes termos:
— Passarei a dizer-lhes. (Era esta a phrase com que elle começava sempre as suas narrações) que hontem pelas dez horas da noite, ouviu-se em Campo de Ourique, no quartel do regimento n.º 4, um toque de rebate acompanhado de muita vozeria e vivas.
Tambor mor de infantaria n° 4, 1834. Aguarela de Ribeiro Arthur. Imagem: Militária |
Era uma revolta que principiava a desenvolver-se [revolta cartista de 21 de agosto de 1831, em que participa Alexandre Herculano então com 21 anos].
O coronel e o tenente coronel estavam ausentes, e o major entretido no seu quarto a jogar com a maior parte dos officiaes. Sobresaltados todos com a novidade, sairam para a praça d'armas, e ahi deram com muitos sargentos e soldados, que se tinham sublevado, dando vivas a D. Pedro e D. Maria da Gloria.
Travou-se então uma lucta, procurando a officialidade suffocar a rebellião; mas affluindo mais soldadesca armada, foi morto um capitão, e dos outros officiaes parte fugiram, alguns d'elles feridos e contusos, e a outra parte annuiu á revolta para salvar as vidas, sendo muito poucos os que a seguiram do coração, porque o maior numero foram successivamente desertando.
N'este estado de coisas e achando-se o regimento já todo sublevado, appareceu um militar desconhecido que tomou o commando d'elle; e sendo logo arrombadas as portas da arrecadação e tiradas as bandeiras, saiu toda a força para a parada, aos tiros, vivas e toques de hymnos constitucionaes.
Demoraram-se ali muito tempo, esperando ao que parecia noticias da sublevação de outros corpos; mas vendo por fim que taes noticias não chegavam, e começando a lavrar o desalento e a deserção, o agente desconhecido saiu com elles da parada em direitura á rua do Sol.
Lisboa, esquina da rua de S Bento e rua do Sol ao Rato, Alfredo Roque Gameiro, 1925. Imagem: www.roquegameiro.org |
Assim foram marchando, já em grande insubordinação, e chegando a rua de S. Bento, appareceu-lhes outro militar desconhecido, a cavallo, e participou ao chefe dos revoltados, que o movimento falhara em n.º 16, e que este regimento estava já prevenido e formado, assim como toda a guarnição.
Então viram bem os dois desconhecidos que a revolta não podia ter bom exito; mas tambem viram que era impossivel recuar. Os soldados não obedeciam, a cada qual dava a sua ordem, e não se lhes podendo dizer o estado das coisas, deixaram os dois agentes que se destacasse alguma força para Valle de Pereiro afim de ir sublevar o regimento n.º 16, coisa que a alguns sargentos parecia poder-se conseguir facilmente, e com o grosso do regimento seguiram pela rua de S. Bento a encontrarem-se com milicias de Lisboa Occidental.
— Esses — disse o corregedor d'Almada, que tambem estava presente, homem muito realista, mas tolerante com todas as opiniões — não podiam prestar-lhes auxilio, porque 80 praças d'esse corpo, por desconfiança, tinham sido dias antes destacadas para Porto Franco, ficando em S. Bento apenas outras 80, nas quaes o governo tambem não confiava, mas que não causavam receio juntas como estavam com uma companhia da policia.
— Ora adeus Ó vida minha! disse o Faria. O que haviam elles de fazer! E tanto, que apenas os do 4 chegaram proximo do convento, a policia, alguns milicianos, e até alguns frades lhes fizeram fogo de dentre do muro da cerca. Pelo que os revoltados, conhecendo que nada ali podiam esperar de favoravel, e que a marcha pela rua de S. Bento lhes estava cortada, voltaram atrás, e subiram pela travessa do Pombal direitos ao Collegio dos Nobres, na idea de que iam encontrar a gente que tinham destacado, já com o regimento 16.
— Foi então que os dois desconhecidos desappareceram — disse o corregedor d'Almada.
Perdão! Foi na Praça da Alegria — observou o filho mais velho de Jeronymo; e começou uma pequena discussão entre elle, o corregedor e mais algumas pessoas presentes.
Lisboa, Feira da Ladra na Praça da Alegria, Nicolas Delerive, aspecto na década de 1810. Imagem: MNAA |
— Então fallo eu, ou fallam os senhores! exclamou o Faria.
— Leva de rumor! disse Diniz. Deixemos fallar o sr. Faria. E todos guardaram silencio.
— Effectivamente, continuou o Faria, disseram-me que tinham fugido proximo do Collegio dos Nobres, o tal do cavallo branco que apparecera na rua de S. Bento, e o outro que vinha a pé e que ahi montou a cavallo.
O caso é que a força sublevada, chegando ao Collegio dos Nobres, e encontrando um piquete de 16, que lhe fez fogo do lado de S. Mamede, tomou para a Patriarchal, e soffrendo tambem o fogo de uma força da policia postada sobre os alicerces do edíficio do Erario Novo, que tanto afeiam aquelle largo, retirou pela calçada do Moinho de Vento em direcção á Praça da Alegria.
Lisboa, Feira da Ladra na Praça da Alegria, primeiro quartel do século XIX, aguarela adquirida por Júlio de Castilho. Imagem: Dias que Voam |
Chegando ali correu o alferes Bernardo Pereira para junto do sargento Caetano Alberto que ia na frente.
— Meu amigo, disse elle todo convulso, parece-me que estamos perdidos. O que havemos agora de fazer?
— Se não tivessemos honra nem vergonha fariamos como os miseraveis que nos teem abandonado; mas é outra a nossa tempera. Ponha-se v. s.a na frente com o sr. cadete Lacerda, e commandem o regimento.
— Soldados, gritou elle, parte do 16 acha-se no Rocio com cavallaria e os nossos camaradas. Vamos juntar-nos a elles, e viva o sr. D. Pedro! A força respondeu com muitos vivas, e eil-os ahi vão sobre o Rocio.
Soava meia noite quando lá chegaram; mas em vez do auxilio que esperavam, deram com tropas inimigas postadas nas bocas das ruas. Estava tudo acabado, e a tragedia concluiu com a prisão dos sublevados, que a esse tempo já não montavam a 200.
— Então nada nos dizes de Franco nem de Gomes? perguntou Diniz.
— Lá vou já. Hoje de manhã fui, como sabem, de proposito a Lisboa saber d'elles. Dirigi-me a casa de um amigo de Franco, no largo do Rato, e em a tão boa hora que lá o encontrei.
Disse-me que agradecia muito o cuidado do sr. Diniz, sua familia e mais amigos. Foi com o corpo até á rua de S. Bento; mas vendo os soldados insubordinados, e que a força se fraccionava, tratou de se acolher a casa do seu amigo, d'onde saia, quando me apartei d'elle, para se apresentar no quartel-general. Em quanto a Gomes disse-me que não tivessem cuidado, porque o tinha salvado do furor da soldadesca.
— O que è verdade, acrescentou Faria, è que a revolta não estava ainda madura; rebentou fora de tempo para se aproveitar a circumstancia de não estarem no quartel o coronel e o tenente coronel.
Se tivessem prendido os officiaes que lhes eram desaffectos, em vez de os deixarem fugir, se lhes tivessem apparecido outros para os commandarem, e se não começassem com tiros e toques de hymnos, que puzeram tudo em alarma, o resultado seria outro, porque, segundo me disse Franco, a revolta estava para rebentar tambem em cavallaria 1, no proprio regimento 16, e até nos corpos aquartellados no castello.
— Quem lhe fez o maior mal, disse o corregedor d'Almada, foi um oflicial que fugiu no principio, e que foi por de aviso todo o resto da guarnição.
— E que mais soube o sr. Faria? disse Antão Diniz.
— Que os prisioneiros todos teem ido para bordo da nau “Rainha”, que serão mettidos em conselho de guerra, e agora provavelmente teremos fusillamentos.
— E a que horas acabou a revolta? Perguntou Diniz.
— Pelas duas horas da noite tudo estava socegado. Esquecia-me dizer que ao passar o regimento pela rua do Sol, um mestre de meninos chamado Sá, sentindo vivas, abriu a janella e poz-se a victoriar o sr. D. Miguel; mas um soldado desfechou com elle, a bala entrou-lhe pela boca, e o homem foi para os anjinhos.
— Coitado, disse Chrysostomo, conheci-o muito bem; era boa pessoa. mas tinha o defeito de se intrometter demasiadamente em coisas politicas.
— Ainda não contei tudo, ajuntou o Faria. Quando os revoltosos chegaram ao Rocio, o major da policia, José Maria da Silva, disse para o brigadeiro do mesmo corpo: “Sr. general, se me da licença, eu vou arengar áquelles desgraçados, e elles deporão as armas sem eliusão de sangue”.
— O general respondeu: “Vosse não sabe o que eu tropa amotinada e em rebellião. Creia que só a força os fará render.”
— Mas insistindo o major, o general disse-lhe por fim:
"Pois vá, mas sob a sua responsabilidade, porque não quero carregar com a culpa do que lhe acontecer".
Então deu elle de esporas ao cavallo, e apresentando-se diante dos revoltados, bradou-lhes:
— Camaradas! Bem vêem que estão cercados por toda a parte. Para que e derramar mais sangue inutilmente? Rendam-se que eu lhes prometto não se lhes fará mal.
— A resposta foi a que previra o brigadeiro. Muitas espingardas se apontaram para o infeliz official.
— Não matem o homem! exclamou o alferes Bernardo Pereira; mas era tarde, e o pobre major caiu do cavallo mortalmente ferido.
A policia deu então uma descarga cerrada, e depois de fraca resistencia, foram todos aprisionados.
S.M.I. o Senhor D. Pedro restituindo sua Augusta Filha a Senhora D. Maria Segunda e a Carta Constitucional aos Portugueses, Nicolas-Eustache Maurin,1832. Imagem: Wikipédia |
Faria tinha acabado de fallar e comtudo o silencio reinava nos circumstantes, até que um dos filhos de Jeronymo disse:
— Meus senhores, os nossos amigos estão salvos, aqui na Outra-Banda ha o maior socego; ponhamos de parte as tristezas, e vamos as nossas musicas.
Mas estas vozes não acharam ecco, e a casa de Faria foi ficando pouco a pouco deserta.
Em todo aquelle dia e noite o oratorio de Antão Diniz esteve aberto e alumiado, e frequentes vezes D. Francisca e sua filha Mathilde iam ali orar por Franco e Gomes.
Silva, Avelino Amaro da, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863, 167 págs.
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