sábado, 13 de dezembro de 2014

O Caramujo, romance histórico (6/18), sapo e doninha


SAPO E DONINHA



Almada, vista tomada do Campo de S. Paulo, Nogueira da Silva (desenho), Coelho Junior (gravura), 1859.
Imagem: Archivo Pittoresco, Hemeroteca Digital

Já lá vão bastantes annos depois d'essa tarde de abril, em que Antão Diniz, de sobrecasaca azul com botões amarellos, galões de major nos punhos, chapéo redondo, e guarda-sol ao hombro, levava pelo braço D. Francisca Rosa de Lima, sua mulher, a santa senhora, como lhe chamava a tia Libania; adiante sua filha Mathilde, linda mocinha de l6 annos, com seus sapatos de fitas traçadas, e vestido de seda cor de canella, toda peralta, como tambem dizia a tia Libania; e á esquerda de D. Francisca, o joven Luiz Franco, a cara mais sympathica de rapaz que eu tenho conhecido.

La se ía este ranchínho na direcção da Arealva, por aquella empoeirada estrada, para onde a brisa impellia os aromas de mil odoriferas plantas. Sobre elle o nosso bello sol meridional projectava a sua cor doirada d'entre o azul da abobada celeste. Ao longe ouvia-se a chiada dos carros e o saudoso ulular dos moinhos.

Ó cidades. que ostentaes vossos templos, palacios, carroagens e oiros! Por maior que seja a vossa pompa e grandeza, não conseguireis que eu esqueça uma hora passada nos amenos logares da Outra-Banda.

Lá vão pois estrada fóra; e para fazerem o passeio mais longo, ao chegarem ao poço de Cacilhas sobem a Almada, contemplam Lisboa, cidade que d'ali parece como feita de marfim, e a que só faltam os minaretes para se afigurar ao viajante uma cidade mahometana, tão branca e phantastica se apresenta á vista com seu hello porto, vasto, e ermo de navios n'esta época da decadencia de Portugal...

Vista da parte ocidental de Lisboa, Alexandre Jean Noel, início da década de 1790
Imagem: FRESS

Depois descem á Bocca do Vento, dirigem-se a Olho de Boi, e percorrem o longo caes que conduz á entrada da Arealva. Eil-os na quinta d'este nome, nos bancos de pedra, junto ao portão, debaixo das velhas arvores.

— Pae! Se eu fôra rapaz, diz Mathilde, havia de vir muitas vezes deitar-me á sombra d'este arvoredo, a olhar para o céo, para o Tejo, e para as penedias que estão por cima de nossas cabeças.
— Para que filha? diz Antão Diniz.
— Ora para que... para que não sei... Gosto muito de estar aqui.
— É um optimo logar para pensar, para meditar, observa Luiz Franco.
— Para pensar! replica Mathilde. Pois póde-se pensar quando se está diante d`estas scenas?!... Eu por mim não posso senão contemplar, e acho pouco todo o meu coração para isso.
— Já senti o mesmo, filha, tornou Antão Diniz, se bem que não soubesse então, nem me atravesse a exprimir taes sensações, com medo de que ellas fossem grande defeito da minha alma, defeito que me cumpria occultar; mas hoje que aprecio melhor o juizo que então formava das minhas sensações, sei fazer justiça ao teu coração.

— Muito bem, sr. Antão Diniz, observa Luiz Franco. Mas a longa contemplação das bellas paisagens costuma trazer no fim certa porção de tristeza, um sentimento que acabrunha o espirito, e como que lhe embota por momentos as faculdades; sentimento a que nos esforçâmos por subtrair-nos (tanto elle nos enleva!) transportando-nos a logares mais prosaicos.
— É, diz Antão Diniz, porque a contemplação não interrompida de tantas maravilhas cansa a alma, e ella precisa de descançar em outros objectos menos imponentes. Tudo no mundo tem e precisa ter verso e reverso, claro e escuro, e a sensibilidade da alma não é exceptuada da regra geral.

— Quem será que lé vem adiante? — diz D. Francisca, que principiava a aborrecer-se com a conversação.
— Parece marujo — observa Franco. Effectivamente da banda do Olho de Boi vinha um marinheiro alto, que ao chegar proximo do grupo de que fallamos, tirou o seu chapéo embreado, e deu as boas tardes, acrescentando:

— Acaso v. ex.as perderam alguma coisa?

Depois de alguns momentos, disse Mathilde — Perdi o meu lenço.

— É este? Aqui está, e por feliz me dou em ter achado este lencinho da sr.a D. Mathilde, filha do sr. Antão Diniz, de quem sou humildo criado.

Espanta-maridos disse tudo isto porque viu que o não tinham reconhecido; mas disse-o do um modo que á força de ser delicado degenerava em grotesco, o que fez sorrir Luiz Franco.

— Quem és tn que nos conheces? — perguntou Diniz com modo benevolente.
— Sou Joaquim de Jesus, o Espanta-maridos, alcunha que nunca pude saber quem foi o parceiro que m'a poz, mas que nunca mais pude tirar de cima do lombo.
— Ó Joaquim de Jesus! Tu por aqui! Então que é feito? Chega-te cá, meu rapaz, que te quero dar um abraço.

Espanta-maridos abriu os braços, e deu um passo para diante, mas parando de repente, disse:

— Não acceito. É demasiada honra para um engeitado e marinheiro.
— Será, será; mas não para homens como tu, que possuem um nobre coração. E abraçaram-se.

Depois recebeu Espanta-maridos outro cordial abraço de Franco, e fez os cumprimentos ás senhoras.

Ora ha em toda a gente da Outra Banda ricos e pobres, um certo ar de affabilidade e de agasalho mutuo, que diflicilmente se encontra nas cidades.

Ali o abastado trata o pobre e o miseravel com toda a urbanidade, conversa e mesmo ri com elle, mas isto de modo tal que não exclue o respeito entre as differentes classes; e a gente de Lisboa que lá vae passar o verão affaz-se sem custo a tão bella familiaridade.

Ás vezes de tarde em Cacilhas, no Caramujo, na Piedade e em Almada, parecem todos mais uma tribu, que uma reunião de familias estranhas e distinctas entre si em interesses e posição.

E tambem isto se encontra pouco nas outras terras do campo.

— Então está de marinheiro em algum navio mercante? perguntou D. Francisca.
— De contra-mestre, minha senhora. Vim ha pouco de Cabo Haytiano, foi a minha ultima viagem.

— Se me não engano, disse Luiz Franco, Cabo Haytiano e o antigo Cabo Francez, hoje capital de uma republica de pretos. Havia de ver por lá coisas bem curiosas.
— Muitas, respondeu Espanta-maridos. É a viagem mais divertida que tenho feito na minha carreira de marítimo, que ainda assim não e muito longa 18 — annos somente.

— Lá as mulheres são todas pretas: não é assim? — diz Mathilde.
— Pretas e mulatas; mas estas ultimas são bem poucas comparadas com as pretas. Ha algumas brancas, mas são de familias de ministros, cônsules e alguns poucos negociantes estrangeiros. Ha deputados pretos, generaes pretos, almirantes, juizes, marítimos, tudo é preto ou mulato, e as mulheres e filhos tambem.

— Se o sr. Joaquim de Jesus tivesse a bondade de nos contar algumas coisas do que por lá viu, muito estimaria ouvil-o disse D. Francisca.
— Com todo o gosto. Mas v. ex.as hão de achar mais interessante a leitura dos apontamentos que o piloto tomou do que observava quando ia a terra. Elle, como era muito meu amigo, deu-me o borrão depois de o ter passado a limpo. Trago-o aqui, e se v. ex.as quizerem lerei algumas folhas.

Enseada da Glória, Ponta do Calabouço e Morro do Castelo, litografia de Benoist e Ciceri, 1852
Imagem: Especial Rio Antigo no Facebook

Desejando todos saber o contheudo do manuscripto, Espanta-maridos foi buscar um carrinho de mão, que estava proximo, voltou-o, sentou-se em cima, e disse:

— Antes de começar a leitura, devo dizer a v. ex.as que parti do Rio de Janeiro de contra-mestre a bordo do Conceição Flor de Maria [o bergantim, pequeno veleiro de transporte e comércio, ainda operava em 1885], da praça de Lisboa, com direcção a New-York; mas tendo-nos adoecido na altura das Grandes Antilhas alguns marinheiros e o capitão, este, que era dono do navio, quiz arribar a Cabo Haytiano, onde o ministro hespanhol era muito seu amigo e pessoa rica. Ancorámos com effeito em Cabo Haytiano, cidade de muito mesquinha apparencia, e transportados os doentes para casa do hespanhol, ficou o piloto, que era filho do capitão, encarregado do navio, e aqui está. o que elle nas horas vagas se entretinha a escrever:

— "Apenas cheguei a Cabo Haytiano, desembarquei, e ao sair da alfandega fui logo rodeado de gente esfarrapada, que com grande insistencia me pedia esmola. Contentei-os. Metti-me depois pela cidade, e breve deparei com um grande ajuntamento de pretalhada á porta da casa da misericordia. Estavam ali empilhadas perto de 2:000 pessoas de ambos os sexos.

Era a venda dos bilhetes da loteria. A todo o instante saiam d'aquelle immenso grupo gritos de soccorro e desesperação. Por vezes foram lá pequenas forças de infanteria e cavallaria para valerem aos desgraçados que succumbiam no apertão e fazerem com que elle diminuisse; mas nada remediavam. E como precederam no fim de tudo as auctoridades? Deixaram continuar aquelle horrivel espectaculo, e limitaram-se a mandar por macas no largo para levarem ao hospital ou ao cemiterio os que ficassem contusos ou mortos.

E effectivamente assim aconteceu, porque morreram duas pessoas, e ficaram bastantes gravemente pisadas. E não foi por falta de tropa, porque a guarnição da cidade era de muitos mil soldados de todas as armas. Fiquei logo por este facto entendendo que estava em terra de barbaros, e o mais que observei me confirmou n'esta opinião.

No dia seguinte passei outra vez pela casa da misericordia, e entrei na egreja. Estava á porta uma turba de mendigos fazendo lamuria. Havia grande funcção, o povo era immenso. Olhei em roda, e vi uma bancada, e n'elIa em cadeira dourada e de espaldar um preto gordo de argolas de ouro nas orelhas. Vi então chegar outro preto vestido exactamente como os chamados irmãos de azul da misericordia de Lisboa. Trazia na mão uma tenaz de prata com uma braza. Parou diante do preto gordo fazendo-lho grande venia. Este puchou de um charuto, accendeu-o, e poz-se a fumar. Interroguei a este respeito um mulato que me ficava ao pé, e respondeu-me que a ninguem era permittido fumar na egreja, mas que o fazia, com grande escandalo, o irmão do marquez de Branques, que era o tal preto das argolas, e ninguem lhe ia á mão por ser o provedor da misericordia e fidalgo de muita importancia.

Em outro dia passei pela casa das sessões legislativas e entrei. Ouvi por muito tempo questionar qual de dois deputados era o que devia fallar primeiro. Houve sobre isto discursos e votações. Acabada esta questão, approvou-se a despesa de alguns contos de réis com a compra de pós para matar pulgas e percevejos nos quarteis da tropa. Seguiu-se a approvacão de uma pensão para a mulher do presidente da camara, o que muito o contentou porque se estavaa rir e a rebolar na cadeira a cada momento. Seguidamente votou-se que se dessem a um engenheiro inglez 75 contos de réis por alguns estudos de portos e barras.

O homem estava na galeria, era meu conhecido, e fallava alguma coisa portuguez. Apenas se votou o seu negocio, veio logo ter comigo, e disse-me com a maior franqueza:

— Estes estudes, senhorre portugasio, valerre une bagatelle; mas no force, mim fique agora rique. Mim e otrres estrancheires combinarre com Ministres negrres; elles entreterre populache com politiques, e fazerre comigue e outrres aventureires contrrates ruinoses pârre Hayti. Nós dividirre com chefes de maiorie e opposicione, e assim mim e elles todes vae ficande riques. Nós e homes grrandes de Hayti, excepte poques cabeçudes, sérre todes come une companhie de cavalheires de industrie. Elles e nos tinhe sapates ha dois dies, e hoje temes carriges e cavalhes. Hayti fique arruinade; mas o proveito de quem é, senhorre portugasio? — dizia-me elle batendo-me palmadas nas costas, e dando grandes gargalhadas. Quande gate come frangues o proveite de quem é?

— É de gate, respondi eu com egual hilaridade. Depois approvou-se um emprestimo feito ao governo por um banqueiro alemão, em que este ganhou e o Hayti perdeu coisa de um milhão de cruzados.

E depois... saí pela-porta fóra farto de presenciar tantas miserias.

Quando fui a Leogane vi uma coisa extraordinaria.

N'uma grande casa, as grades de ferro das janellas, estavam muitos pretos que deitavam para fora paus de que pendiam atados em cordas cabazes, cestos e cabeçadas de burro, assim a modo de quem pesca ao candeio, e pediam com vozes lacrimosas que lhes deitassem ali alguns cobres.

Era a prisão da cidade. O espectaculo pareceu-me hediondo. E passava-se isto n'uma das principaes praças publicas.

Tendo eu comido em terra algum peixe temperado com vinagre, á noite a bordo fui acommettido de uma violenta colica. Era do vinagre, que estava adulterado. Tambem encontrei no fundo de uma chavena de chá alguma limalha de cobre. Era do assucar, que lá se retina em grandes bacias d'aquelle metal. Comprei um pouco do chá, e ao passal-o para um vidro notei que o papel ficava esverdeado. Disseram-me que não estranhasse isto, porque o governo d'aquelle paiz não se importa com a saude publica, e cada qual pode a seu salvo vender generos falsificados.

Quando percorri as margens do Artibonite, vi que o terreno era mui fertil, e que a maior parte estava por cultivar.

Vêem-se excellentes campos todos cobertos de matto e convertidos em charnecas, e aldeias miseraveis habitadas por gente rota e immunda."

— Basta, Espanta-maridos! — disse Antão Diniz. Muito prazer nos daria a continuação da leitura; mas vae-se fazendo tarde, e ainda estas senhoras não passearam na quinta. Apparece lá por casa com esses apontamentos, que muito nos teem divertido os costumes da pretalhada.
— E ainda v. ex.as não ouviram mais do que uma pequena parte, disse Espanta-maridos, guardando o ensebado manuscripto.

Cacilhas, Praia da Fonte da Pipa e Olho-de-Boi, João Vaz.
Imagem: Casario do Ginjal

Effectivamente entraram todos para a quinta, e passeando, ao chegarem perto do pequeno logar da Arealva, ouviram quasi aos pés um guinchar de afflicção, como de ratinho perseguido por gato.

— Olhe, mãe, para aquelle lado — exclama Mathilde. Está ali um sapo, e anda um ratinho a guinchar em frente d'elle. E o maldito sapo está de boca aberta.
— Paremos aqui, e sentem-se sem fazerem bulha, disse Antão Diniz. Vamos agora ver um dos phenomenos mais singulares que se dão na natureza.

É o sapo engulir uma doninha pela simples influencia da fascinação.

— Tinha ouvido fallar n'este phenomeno, disse Luiz Franco, mas até hoje ainda o não tinha presenciado. Estou com curiosidade de o ver.
— Então o sapo come a doninha? — disse Mathilde.
— Come sim, e vaes ver — respondeu Diniz.
— Se não fosse o sr. Antão Diniz querer ver o caso e mostral-o ás senhoras, já o sapo não estava com vida, observou Espanta-maridos.

Com effeito no meio do chão-estava o nojento reptil, muito grande, immovel, e sem tirar os olhos da pobre doninha.

Esta, parecida com um pequeno rato, porém mais bonita, e côr de castanha, corria de um lado para o outro formando meios círculos diante do sapo, o qual não desviava um momento a vista de sobre ella.

O animalzinho guinchava dolorosamente, levantava-se nos pés, corria e estremecia, mas olhando sempre para o sapo. Alguns instantes durou esta lucta, e a doninha ia estreitando a seu pezar os semicirculos que fazia, até que dando maiores guinchos, correu para diante, e metteu-se pela boca do sapo, que n'um instante a enguliu.

— Está acabado o phenomeno, já vimos: agora sô Joaquim de Jesus faça a sua vontade.

Espanta-maridos não se fez rogar, arrancou um tronquinbo do uma videira, e espetou o sapo, puchou da navalha, abriu-o, e tirou-lhe de dentro do bucho a doninha ainda estrebuchando.

Mas a coitada envolvida na baba immunda do reptil, acabou logo de espirar.

Quinta da Arealva, Margarida Bico.
Imagem: Panoramio

— Bem feito, sr. Joaquim de Jesus, bem feito. Mas a nossa curiosidade custou a vida á pobre doninha — disse D. Mathilde.
— No Brasil, observou Espanta-maridos, ha umas cobras que teem o mesmo poder de fascinação, e até sobre creaturas humanas as vezes o exercem.

Dito isto deitou fora a doninha e cravou no terreno a vara, ficando o sapo espetado na extremidade superior d'ella.

A este tempo appareceram Botelho e Gomes, e a sociedade continuou a passear separando-se um tanto adiante Mathilde, Franco, Botelho, e Gomes, e ficando mais atraz Diniz, sua mulher e Espanta-maridos.

— Não sabem, meus senhores, disse Mathilde, que vi ainda agora um sapo engulir uma doninha pelo poder da fascinação? Era uma coisa que ainda não tinha visto e mais sou filha da Outra Banda.
— E então: v. ex.a não afugentou o sapo? Bastava atirar-lhe com qualquer coisa para se quebrar o encantamento, disse Botelho.
— O marinheiro queria salvar a doninha, mas meu pai oppoz-se para nós vermos o caso.

— Ha paes que se dariam por muito felizes se em certas oocasiões tivessem podido evitar que as doninhas caissem na boca dos sapos; disse Gomes para Botelho gracejando.

— Mas nem todas as doninhas são engulidas pelos sapos, observou Luiz Franco: ou sabem desviar-se a tempo, ou apparece alguma alma caritativa que impede o effeito da fascinação.

Todos se riram muito d'esta observação de Franco. Fazia calor, e o caminho começava a ser ingreme.

Vista parcial do Tejo, Casa da Cerca e estrada da Fonte da Pipa, 1858. Aguarela, aut. desc., datada 14 de Março de 1858.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

— Ah! como estou cançada, disse Mathilde, e doem-me os pés.
— Apoie-se v. ex.a no meu braço — apressou-se Gomes a dizer. Eu a ajudarei a subir até á Boca do Vento.

— Muito obrigada, sr. Gomes ; mas v. s.a é muito alto; e talvez, se não incommodasse o sr. Franco, fosse melbor-que elle me desse o braço, porque é mais baixo, è melhor para meu braceiro.

Gomes fez-se pallido, e Luiz Franco, apressou-se com toda a delicadeza a dar o braço a Mathilde.

Quanto a Botelho fez um movimento, mas não se resolveu a offerecer-se.

— Fiquei com tanto nojo do reptil, que me parece que o estou vendo apparecer debaixo dos pés.
— Socegue v. ex.a, diz Franco, que por aqui não se encontram sapos.
— Quem sabe, respondeu Matbilde rindo, talvez algum saísse da quinta, e ande por aqui mesmo ao pé de nós.

— Eu o que vejo são flores, e aqui está uma bem singela e bonita, disse Gomes, apanhando um malmequer. Eu gosto muito d'estas flores do campo. Digne-se v. ex.a acceital-a. — Oh! não, sr. Gomes, respondeu Mathilde, e não é pela pessoa que m'a offerece que muito considero e estimo, mas pelo nome da flor... malmequer!
— Quer v. ex.a esta cravina? Disse Franco, tirando uma cravina da abotoadura da casaca.
— Acceito antes a cravina. É uma flor mais delicada e menos commum, ao passo que o malmequer é de nome e côr desagradavel, e nasce por toda a parte. E que bello aroma que tem a cravina!

— Perdoe v. ex.a; quer ver como a flor vae desmentir o nome? E Gomes, dizendo isto, começou com uma curiosidade infantil a dizer "bem me quer, mal me quer, bem me quer, mal me quer" á medida que ia passando pelos dedos as folhas da flor sem comtudo a deteriorar, ate á ultima, a que correspondiam as palavras " mal me quer" Fiquei logrado, continuou elle, a flor deixou-me ficar mal; mas quando a offereci a v. ex.a era na idéa de que a final desmentisse o seu nome.
— Pois bem, disse Mathilde, acceito-a para não parecer impertinente. Mas vamos a tanta distancia. Esperemos aqui pelos nossos companheiros.

Almada, Boca do Vento, ed. Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 12, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

E sentaram-se todos tres no alto da Boca do Vento. Entretanto chegaram Antão Diniz e sua mulher acompanhados de Espanta-maridos, e todos seguiram o caminho do Caramujo, indo Botelho ficar n'essa noite a casa de Gomes.

Quando Mathilde se recolheu ao seu quarto, Felizarda disse-lhe:

— O sr. Gomes pediu-me encarecidamente que entregasse esta carta á menina. Elle pediu-me tanto, que eu não pude recusar-me, mesmo porque me disse que se não a entregasse me intrigaria com Espanta-maridos, que, como a menina sabe, é o meu namorado.
— Ah ! com que elle deu-te a carta e disse-te isso! respondeu Mathilde abrindo-a. Vamos a ver.

Lida a carta, que era uma protestação amorosa, Mathilde dictou e Felizarda escreveu os seguinte — Sr. Gomes — Escusa de se cançar: digo-lhe uma vez por todas que perde o seu tempo.

No dia seguinte, ao alvorecer, foi Gomes ao Caramujo, recebeu de Felizarda a resposta á sua carta, e cheio de despeito partiu pouco depois a reunir-se ao seu regimento.


Silva, Avelino Amaro da, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863, 167 págs.

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