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Embarque na ponte dos Vapores Lisbonenses, fotografia de Joshua Benoliel (1873-1972). Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Já embarcado, recordava-me de sensações análogas de júbilo dos sentidos, experimentadas ao atravessar em semelhantes barcos o porto de Havana ou a baía de Nova York. Transportava-me mentalmente sobretudo às paragens de Cuba, de luz tão intensa, tão tremendamente intensa, que deslumbra e cega. Lisboa tem um céu de Cuba, um céu dos trópicos.
Parte-se do Cais do Sodré e atravessa-se o Tejo, o rio Tejo, que ao desembocar no oceano forma o radiante porto de Lisboa. Conforme vamos avançando no vaporzinho vou descobrindo as belezas sem par desta capital.
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Adamastor, cruzador da Armada Real Portuguesa. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Passo junto aos navios de guerra amarrados no porto, os pequenos, porém gentis e novos cruzadores que se chamam D. Carlos, D. Amélia S. Gabriel, a canhoeira Pátria, feita pela subscrição dos portugueses no Brasil quando do ultimato de Inglaterra com motivo no conflito colonial em África, o torpedeiro Tejo, que é um interessante modelo no seu género.
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Dom Carlos I, cruzador da Armada Real Portuguesa Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Passo pelo meio de navios mercantes de diferentes nacionalidades, e nenhum de Espanha. Neste porto não se vê mais que raramente a nossa bandeira, não obstante sermos vizinhos e cantar-se a cada momento em Espanha e Portugal a necessidade de comunicação de almas e interesses.
À medida que o vaporzinho se distancia de Lisboa, a cidade toda inteira aparece a meus olhos, fica um pouco na sombra comparada com a luz que nos banha e nos inunda. E como fica na sombra, posso observá-la melhor mais consciente e a meu gosto.
Vejo a Praça do Comércio, vulgarmente conhecida com o nome de Terreiro do Paço. Foi construída depois do tremor de terra de 1755. É quadrada, ampla, vastissina, plantada de árvores e cheia de edifícios com aparência monumental, a Bolsa, o Tribunal de Cassação, a Casa dos Correios.
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Praça do Comércio vista do rio Tejo. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Ao centro destaca-se a estátua equestre do Rei D. José I, e, abaixo da estátua, um medalhão com o busto do Marquês de Pombal. Há que esperar que algum dia a história realize um acto de justiça e o símbolo régio desça e o grande estadista Pombal suba às altura, alturas dignas de sua fama e seus serviços à pátria.
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Panorâmica da praça do Comércio e encosta do Castelo de São Jorge. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Desde o Tejo descobre-se bem a magnificência do arco da rua Augusta, e logo, por muito que a vista penetre pelo largo do Terreiro do Paço, os olhos não acertam em distinguir contornos e proporções. É um dédalo confuso de ruas, de grandes artérias, pelas quais desemboca na Praça do Comércio, e no porto, toda a vida da cidade.
Eu diria que vejo de um observatório marítimo, posto que está muito alto, Praça de D. Pedro ou Rossio, com o seu Teatro D. Maria, ainda que não mentisse, não poderia jurá-lo. O vaporzinho foi-se distanciando tanto, que tudo são massas confusas, indistintas, indeterminadas. Parecem-me os edifícios públicos, as igrejas e as casas, como se fossem matronas vestidas de branco e purpura, envoltas em seus panos esculturais, que se assomam para nos ver melhor por cima da varanda do porto.
E as matronas, ao assomarem-se, adotam posturas de deusas, avançam a passo, enviam-nos beijos, como se quisessem reter-nos, a fim que não abandonássemos a cidade formosa...
O vaporzinho chegou à outra margem do Tejo.
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Barco a vapor a atracar em Cacilhas. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Amarra junto à costa, e num instante desembarcam todos os passageiros. Estamos em Cacilhas. É um lugar de casas muito brancas, limpo e puro, sem luxo; porém com todo o encanto de uma praia meridional bem ensolarada. Uma aglomerado de cocheiros disputa a honra de nos levar do pequeno lugar até acima, ao castelo de Almada ou ao palácio do Alfeite, ou à Cova da Piedade.
Começa um regateio curioso, e brigam entre si os cocheiros, porque todos nos querem conquistar. Por fim escolho um coche, e depois de arreados os cavalinhos pelo seu condutor, começam a subida da ingreme encosta.
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Almada, Pharol de Cacilhas, Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 03, década de 1900. Imagem: Fundação Portimagem |
Acima, no castelo de Almada o panorama é maravilhoso. Volto a distinguir os cruzadores, o torpedeiro e a canhoeira. Desde o castelo parecem muito mais pequenos do que realmente são. porém não me entretenho a fazer considerações sobre a frota de Portugal, porque recordo que no meu país andamos pouco mais ou menos pelo mesmo em matéria de esquadra.
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Navios de guerra ingleses no Rio Tejo, década de 1910. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Com a diferença que a nós nada nos protege as "costas", mesmo com os interesses que costuma cobrar a Inglaterra. (1)
(1) Luis Morote, El Heraldo de Madrid, 16/08/1904