segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

El Heraldo de Madrid

Às duas da tarde, aguentado um sol que emanava chispas, que era capaz, pela sua intensidade, de levantar erupções na pele, aproximei-me da estação de onde partem os Vapores Lisbonenses no Cais do Sodré.

Embarque na ponte dos Vapores Lisbonenses, fotografia de Joshua Benoliel (1873-1972).
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Já embarcado, recordava-me de sensações análogas de júbilo dos sentidos, experimentadas ao atravessar em semelhantes barcos o porto de Havana ou a baía de Nova York. Transportava-me mentalmente sobretudo às paragens de Cuba, de luz tão intensa, tão tremendamente intensa, que deslumbra e cega. Lisboa tem um céu de Cuba, um céu dos trópicos.

Parte-se do Cais do Sodré e atravessa-se o Tejo, o rio Tejo, que ao desembocar no oceano forma o radiante porto de Lisboa. Conforme vamos avançando no vaporzinho vou descobrindo as belezas sem par desta capital.

Adamastor, cruzador da Armada Real Portuguesa.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Passo junto aos navios de guerra amarrados no porto, os pequenos, porém gentis e novos cruzadores que se chamam D. Carlos, D. Amélia S. Gabriel, a canhoeira Pátria, feita pela subscrição dos portugueses no Brasil quando do ultimato de Inglaterra com motivo no conflito colonial em África, o torpedeiro Tejo, que é um interessante modelo no seu género.

Dom Carlos I, cruzador da Armada Real Portuguesa
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Passo pelo meio de navios mercantes de diferentes nacionalidades, e nenhum de Espanha. Neste porto não se vê mais que raramente a nossa bandeira, não obstante sermos vizinhos e cantar-se a cada momento em Espanha e Portugal a necessidade de comunicação de almas e interesses.

À medida que o vaporzinho se distancia de Lisboa, a cidade toda inteira aparece a meus olhos, fica um pouco na sombra comparada com a luz que nos banha e nos inunda. E como fica na sombra, posso observá-la melhor mais consciente e a meu gosto.

Vejo a Praça do Comércio, vulgarmente conhecida com o nome de Terreiro do Paço. Foi construída depois do tremor de terra de 1755. É quadrada, ampla, vastissina, plantada de árvores e cheia de edifícios com aparência monumental, a Bolsa, o Tribunal de Cassação, a Casa dos Correios. 

Praça do Comércio vista do rio Tejo.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Ao centro destaca-se a estátua equestre do Rei D. José I, e, abaixo da estátua, um medalhão com o busto do Marquês de Pombal. Há que esperar que algum dia a história  realize um acto de justiça e o símbolo régio desça e o grande estadista Pombal suba às altura, alturas dignas de sua fama e seus serviços à pátria.

Panorâmica da praça do Comércio e encosta do Castelo de São Jorge.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Desde o Tejo descobre-se bem a magnificência do arco da rua Augusta, e logo, por muito que a vista penetre pelo largo do Terreiro do Paço, os olhos não acertam em distinguir contornos e proporções. É um dédalo confuso de ruas, de grandes artérias, pelas quais desemboca na Praça do Comércio, e no porto, toda a vida da cidade.

Eu diria que vejo de um observatório marítimo, posto que está muito alto, Praça de D. Pedro ou Rossio, com o seu Teatro D. Maria, ainda que não mentisse, não poderia jurá-lo. O vaporzinho foi-se distanciando tanto, que tudo são massas confusas, indistintas, indeterminadas. Parecem-me os edifícios públicos, as igrejas e as casas, como se fossem matronas vestidas de branco e purpura, envoltas em seus panos esculturais, que se assomam para nos ver melhor por cima da varanda do porto.

E as matronas, ao assomarem-se, adotam posturas de deusas, avançam a passo, enviam-nos beijos, como se quisessem reter-nos, a fim que não abandonássemos a cidade formosa...

O vaporzinho chegou à outra margem do Tejo. 

Barco a vapor a atracar em Cacilhas.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Amarra junto à costa, e num instante desembarcam todos os passageiros. Estamos em Cacilhas. É um lugar de casas muito brancas, limpo e puro, sem luxo; porém com todo o encanto de uma praia meridional bem ensolarada. Uma aglomerado de cocheiros disputa a honra de nos levar do pequeno lugar até acima, ao castelo de Almada ou ao palácio do Alfeite, ou à Cova da Piedade.

Começa um regateio curioso, e brigam entre si os cocheiros, porque todos nos querem conquistar. Por fim escolho um coche, e depois de arreados os cavalinhos pelo seu condutor, começam a subida da ingreme encosta.

Almada, Pharol de Cacilhas, Paulo Emílio Guedes & Saraiva, 03, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Acima, no castelo de Almada o panorama é maravilhoso. Volto a distinguir os cruzadores, o torpedeiro e a canhoeira. Desde o castelo parecem muito mais pequenos do que realmente são. porém não me entretenho a fazer considerações sobre a frota de Portugal, porque recordo que no meu país andamos pouco mais ou menos pelo mesmo em matéria de esquadra.

Navios de guerra ingleses no Rio Tejo, década de 1910.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Com a diferença que a nós nada nos protege as "costas", mesmo com os interesses que costuma cobrar a Inglaterra. (1)


(1) Luis Morote, El Heraldo de Madrid, 16/08/1904

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