Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. (1)
Praia do Alfeite, aguarela, António Ramalho, 1881. Alexandra Reis Gomes Markl, António Ramalho, Pintores Portugueses, Lisboa, Edições Inapa, 2004 |
"Nasci, fui criada, namorei e casei no Caramujo", diz D. Berta, 89 anos, 66 dos quais no antigo bairro industrial. Os pais, vindos do interior, conheceram-se em Lisboa e mudaram-se para ali, onde abriram uma taberna. Depois de casar, Berta seguiu-lhes os passos. "Ficava em frente à fábrica das farinhas. Ainda lá está", recorda a antiga comerciante, que servia refeições à base de sopa e peixe frito.
Fábrica Gomes, Caramujo, Arnaldo Fonseca, c 1900. Delcampe - Oliveira |
D. Berta frequentou a escola primária no Alfeite, aprendeu a nadar na praia da Mutela e lavou roupa nos tanques da Romeira. Vai desfiando um rol de figuras do bairro: os aguadeiros Manuel e António, o "maneta" — "que não tinha um braço e vendia água com um carrinho de mão" — a "Beatriz bêbeda" ou o Martins, cujo estabelecimento ficava onde é hoje o restaurante Tia Bé, no Caramujo.
Romeira, Tanque das Lavadeiras, Martins & Silva, década de 1900. Noticias Magazine, 4 de fevereiro de 2018 |
À lista junta o senhor Jerónimo — o cliernte que lhe levava os bilhetinhos de Álvaro, o namorado, com quem está casada há 64 anos. "Era uma zona de muito movimento."
A chaminé da moagem, que apitava à hora do almoço e da saída, causava desassossego e o barulho era constante. "Quando a fábrica parava para fazer limpeza era um silêncio!..."
No Cais do Caramujo, as fragatas descarregavam o carvão para as vagonetas que seguiam pelos carris até perto da chaminé da fábrica e que hoje ainda atravessam a rua.
Descarga de carvão no cais do Caramujo, Leslie Howard, década de 1930. ZONA Magazine |
Rosa, a filha de Berta, lembra-se de a água vir até perto das casas e de tudo ser desembarcado ali: trigo, cevada, louças de barro e carvão de pedra. O bairro apenas parava ao domingo, dia de visitar os amigos ou de deixar o assado numa das padarias do bairro, que cedia os fornos à vizinhança.
Há 23 anos, D. Berta trespassou o negócio e saiu do Caramujo. Não gosta de voltar ao bairro. "Era uma coisa digna de se ver e agora não há nada ali."
Também Hélia Santos, de 59 anos, que nasceu e ali viveu até ao início dos anos 1990, evita voltar.
"As recordações agradáveis já não existem." O pai era guarda-fiscal e chegou ao Caramujo em 1953. Mais tarde mudaria de posto mas continuou a viver ali. "A entrada principal do Alfeite ficava perto e de manhã e à tarde as ruas enchiam-se de militares. E havia também uns carros pretos, de Estado, que traziam os oficiais."
Caramujo, vista docais e do posto da Guarda Fiscal (o edifício mais alto), Leslie Howard, década de 1930. ZONA Magazine |
Das fábricas, lembra-se do mar de gente que enchia a rua às cinco da tarde: as condições de vida eram modestas, com várias famílias a partilhar a mesma casa e a maioria regressava do trabalho a pé. Hélia recorda-se do convívio entre vizinhos, com conversas na rua ou à janela. As padarias abriam à tarde para garantir que quem saía do trabalho levava pão fresco para casa.
Hélia soma ainda às memórias as fragatas vindas do Ribatejo, que chegavam no verão ao cais do Caramujo carregadas de melão, e as carroças que, depois de vazias, levavam os miúdos do bairro a passear. As idas à "cooperativa" também eram uma constante.
Fundada por corticeiros, em 1893, a Cooperativa de Consumo Piedense chegou a ser considerada a mais importante da Península Ibérica. Ser sócio implicava ter dinheiro para pagar as quotas e dava um certo estatuto [...]
Passear com António Policarpo pelo bairro é receber uma aula de história. O pai veio trabalhar para a construção naval e António, com 15 nos, também foi para o Alfeite — e é um interessado pelo passado do local. O ponto de encontro, do outro lado da estrada que passa junto ao Hospital Particular de Almada, revela-se fonte infindável de informação.
Vista do Arsenal do Alfeite, Caramujo e Mutela, Mario Novais, década de 1930. flickr |
"A ponte do Caramujo passava por cima de uma linha de água e ficava aqui, quase ao lado do restaurante", explica enquanto mostra uma imagem antiga. A ponte, construída em 1890 [de facto a existência de uma ponte neste local é anterior a 1890], foi demolida em 1939 aquando da instalação do saneamento.
Cova da Piedade, Arnaldo Fonseca, 1890 Boletim do Grémio Portuguez d’Amadores Photographicos |
Ali perto, a ameaçar ruína, está o edifício onde, no início da década de 1860, foi fundada a Sociedade Filarmónica Caramujense — a que mais tarde um grupo de cidadãos próximos da maçonaria e do movimento republicano mudaria o nome para Sociedade Filarmónica União Piedense (SFUAP), que existe até hoje.
"A população vinha de outros pontos do país para trabalhar nas vinhas — a Quinta da Romeira tinha vinha e a região era afamada — mas chegou a filoxera e foi a indústria corticeira que veio salvar a situação", recorda António.
Trabalhadores da Fábrica H. Bucknall & Sons. no Caramujo, década de 1920. Alexandre M. Flores, Almada na História da Indústria Corticeira e do Movimento Operário (1860-1930), ed. CMA 2003 |
Um pouco mais à frente, lembra que antes da moagem existiam ali moinhos de maré — pelo menos desde o século XVI — e, ao virar da esquina, junto ao Tejo, conta histórias de contrabando nas barbas da guarda fiscal.
E junta-lhes histórias dos "assaltos", os encontros entre rapazes e raparigas à socapa dos mais conservadores. «As moças eram supervigi-adas, mas juntavam-se quatro ou cinco em casa de quem tivesse pais mais permissivos e onde houvesse gira-discos, as meninas faziam bo-los e estavam feitas as condições para um "assalto".
Orlando Pedroso era uma presença popular nesses "assaltos" que animavam a Cova da Piedade nos anos 196O. Afinal, era ele o "dono da música"! O pai — o "Pedroso das telefonias" — tinha-lhe cedido um can"to do estabelecimento onde Orlando vendia discos.
Tanoeiros. Memórias e Identidades da Cooperativa de Consumo Piedense |
Orlando descende de uma linhagem de tanoeiros. O bisavô tinha a sua oficina no Caramujo e, no livro Almada Antiga e Moderna, de Alexandre M. Flores, é possível ver a cópia do contrato de arrendamento assinado a 1 de janeiro de 1887 pelo mestre tanoeiro António Pedro: a renda — 36 mil réis anuais — deveria ser paga adiantada "do Natal ao São João".
O bulício era uma constante. "A decadência começou só nos anos 1970 e acentuou-se a partir de então", diz Orlando. "Nos anos 1960, lembro-me dos operários da
Vista panorâmica da "praia pequena" á saída do trabalho na Rankin & Sons Alexandre Flores, Almada antiga e moderna, roteiro iconográfico, Freguesia da Cova da Piedade... 1990 |
Mas o Caramujo também oferecia oportunidades de lazer: "Pescava-se enguias. Era a chamada pesca ao guizo: tínhamos uma linha com uma chumbada, uma tabuinha com um guizo que tocava quando o peixe picava", recorda o bisneto do mestre tanoeiro, que lembra ainda as sessões de cinema na SFUAP, "o cinema do piolho" [...] (2)
(1) Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos, in "Poemas" (Citador)
(2) Há nova vida no bairro fantasma, Noticias Magazine, 4 de fevereiro de 2018 (ou pressreader)
Artigos relacionados:
Almada e Val de Piedade no diário de Dorothy Quillinan
Cova da Piedade em 1890, a ponte do Caramujo
Almada Virtual Museum (pesquisa: caramujo)
Tema:
Caramujo
3 comentários:
Bela reportagem, Rui.
abraço
Um abraço, Luís.
Belíssima reportagem, nela tive o prazer de ver algumas fotos do meu tio-avô Leslie Howard. Obrigado
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