quinta-feira, 31 de março de 2016

História de uma burra

Ouvimos contar o caso, e vamos confial-o á letra redonda para que d'elle se não perca a memoria.

Trafaria (Portugal), Vista geral e rio Tejo, ed. Martins/Martins & Silva, 28, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Tinha tido o porte airoso, as veias de uma transparência aristocrática, o olhar de uma suavidade indizível. Comera pouco, como esses entes quasi ideaes que pisam as alcatifas avelludadas das salas sem as acamar, e não haveria sido uma intrusa na verídica narrativa de uma reunião do "high-life".

Tinha dezeseis annos, a idade florente dos sonhos, dos desejos, dos caprichos para todas as do mesmo sexo, mas não da mesma raça... A protogonista da nossa historia é uma burra!

Dezeseis annos são na mulher a idade da walsa, das confidencias, das meias revelações. Na raça asinina são o desconsolo, a tristeza, a velhice, com todos os seus desencantamentos.

A protogonista da nossa historia nasceu na Trafaria, e pertencia, ou pertence... N'esta duvida entre o passado e o presente é que vai envolvido o mysterio de que tiramos esta verídica narrativa.

Ha na Trafaria um homem chamado Roberto, directo senhor de uma vacca, de meia dúzia de cabras, e de uns torrões pouco productivos, como quasi todos os que ficam ao sopé do monte de Caparica, antigo solar do snr. marquez de Vallada, denunciado ainda hoje ao vulgo por dous palácios em completas ruinas, como convém á velha fidalguia de sangue.

Caparica, Pera, casa de campo, anteriormente pertencente ao Marquês de Valada, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

O Roberto é um homem de cincoenta e tantos annos, que faz pela vida, que deita a pé seis léguas, ou mais se lhe forem precisas para o seu trafego, mas que precisa de um animal seguro de pernas, e de pouco alimento, que o aligeire das cargas mais pesadas quando tem de deitar até Cacilhas, ou levar a sua cara-metade ao cyrio de Nossa Senhora do Cabo.

Previdente como um labutador consciencioso, o Roberto comprou uma burra em 1868, quasi nas vésperas do snr. bispo de Vizeu trocar temporáriamente o báculo pela presidência do conselho de ministros.

Bispo de Vizeu, 1880.
Album de Glorias, Raphael Bordallo Pinheiro.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A Janota, assim se chama a burra, tinha já então sete annos, e não se podia gabar de haver levado boa vida nas mãos de um moleiro, que lhe amolgava diariamente o espinhaço com três ou quatro saccas de farinha, aproveitando-lhe o préstimo nas horas vagas, carregando-a com pyramidaes cargas de tojo.

Moinho e moleiro do Oeste, Domingos Alvão, 1934.
Imagem: Moinhos de Portugal no Facebook

Apesar de todos os pezares, a jumenta era jovial, e aparentada, no dizer dos entendedores de genealogias, com o feliz quadrúpede que o príncipe de Galles comprou em Cintra, para levar para Inglaterra, como um specimen dos productos naturaes da terra dos seus fieis alliados, receando que não lhe chegassem frescas a Londres as queijadas da Sapa.

Podem os bons exemplos deixar de ter imitadores, mas ainda não houve absurdo governativo que deixasse de fazer proselytos. A fúria das economias andava então no ar como o pó, e o Roberto que se não pôde gabar de ter um engenho original, deitou-se a imitar o programma do snr. bispo de Vizeu, pondo a burra a meia ração, como o illustre prelado fizera aos empregados públicos!

As consequências d'este systema económico não tardaram a chegar. A burra que nunca fizera cara ao trabalho, que não exigia mesmo gratificação de palhada para dar conta de qualquer missão espinhosa, começou a definhar de dia para dia, a olhar indifferente para a vacca que girava como ella debaixo da mesma firma commercial, até que deixou pender a cabeça sobre a manjedoura, na altitude resignada de uma beata que adormeceu a rezar o terço.

Era uma victima do orçamento particular do dono. Uma consócia insciente dos planos financeiros da época.

A instrucção publica: a grande burra, Raphael Bordallo Pinheiro, A Parodia, n.° 53, 1901.
Imagem: Hemeroteca Digital

Agora vai começar a parte sentimental d'esta historia. Que pensa o leitor que fez Roberto ao seu braço direito, á burra que tinha incontestável direito a ser aposentada com a ração por inteiro, e a passar os últimos dias da vida, não digo cavaqueando na botica do bairro, com um empregado publico aposentado, mas retouçando livre da albarda a rara verdura que esmeralda o caminho da Sobreda?

Zé Povinho, 1880.
Album de Glorias, Raphael Bordallo Pinheiro.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Mandou-a deitar á margem!

Á margem! São duas palavras só, mas significam o inferno e a eternidade, como de um bipede seu cliente disse o visconde de Castilho, na sua immortal epistola á imperatriz do Brazil.

Á sentença seguiu-se a execução. A burra, a Janota, a intrépida caminheira, a paciente carregadora, foi levada de corda ao pescoço até os juncaes, e lá abandonada ao seu destino, para meditar, se o soubesse fazer, na injustiça dos homens, e na instabilidade da fortuna.

O que são os juncaes? Perguntai-o a Bulhão Pato, ao intrépido caçador, ao apaixonado pelas grandezas da natureza, mesmo nas suas mais agrestes manifestações; ao poeta, que por amar as boninas não deixa de bemquerer ao rosmaninho, nem de se affeiçoar ao sargaço que orla os trilhos tortuosos que conduzem ao topo das encostas escabrosas.

Bulhão Pato, 1880.
Album de Glorias, Raphael Bordallo Pinheiro.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Os juncaes são, a palavra o está dizendo, um terreno húmido e encharcado, tendo por docel um céo esplendido, e por usuaes povoadores inhospitos coelhos, espertas codornizes, rastejadoras perdizes, e, fendendo os ares em desencontrados rumos, espavoridas gaivotas, e ruidosas aves de rapina.

Os juncaes, que nascem e crescem onde as demais plantas degeneram e morrem, acoutam no intrincado labyrintho das suas emmaranhadas raizes os coelhos e as perdizes que o meu amigo Bulhão Pato desaloja dos seus tranquillos coutos, para os ferir de morte na carreira, ou as fazer desabar das alturas, até o desenvolto perdigueiro as ir topar adormecidas na alfombra, para não mais acordarem.

Foi, como dissemos, nos juncaes que a Janota foi abandonada ás vicissitudes da vida errante, ás intempéries das estações, ao desconsolo da solidão, ás misérias do isolamento!

Mas a Providencia é a mãi pródiga dos desvalidos, e reveste as formas que mais lhe apraz para valer á mais humilde das suas creaturas. Havia quasi uma semana que a Janota divagava por entre os juncaes, aspirando as brizas marinhas, e retemperando os pulmões com os perfumes agrestes do trevo e da margacinha, quando em um sabbado, por isso chamam aos sabbados de Nossa Senhora, a Providencia, representada por José Ghumeco, foi topar com a burra dormindo a sesta, com a tranquilhdade de um justo, zurrando por entre sonhos a palavra perdão.

Confesso que sou amigo do Ghumeco, mas não falsearei a minha historia com episódios que eu nâo haja apurado da tradição oral confrontada depois conscienciosamente com os factos subsequentes, que recommendam o nosso homem á benevolência da sociedade protectora dos animaes.

José Ghumeco é um maritimo, nado e creado ná Trafaria, que se sente mais á vontade empunhando um remo, colhendo uma vela, retorcendo um cabo deitando uma rede, conjecturando os ventos, prognosticando temporaes, do que muitos ministros com as pastas, e muitos poetas com a idéa nova.

Trafaria, Vista da Praia, ed. Manuel Henriques, 15, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

O vocabulário do Ghumeco é um vocabulário excepcional, pitoresco, novo, abundante. A alma anda-lhe lavada de ruins paixões. Aprendeu com o mar a serenar logo depois da tempestade. Se lhe escapa uma ruim palavra, conhece que o vento lhe veio de travessia, e põe-se á capa. É pai de uns poucos de mocetões que parece terem sido inventados para o mar, e casado com uma santa mulher que o remenda, e lhe diz quando as ondas não estão para graças:

— Ó homem! se eu fosse a ti não me mettia a tentar a Deus!

A que o Ghumeco responde invariavelmente:

— Á conta de quem pôde, é que a gente anda cá n'este mundo!

Era um sabbado, por signal a 23 de janeiro de 1877, ia o nosso homem para a costa, ver colher uma d'aquellas redes colossaes que trazem á terra dúzias de contos de reis em sardinha, quando, ao passar pelos juncaes, estacou ao ver a Janota que se espreguiçava vergando as pernas com o esforço que fazia para tomar conhecimento de si, com o pello hirto e aguado, denuncia muda da sua involuntária vadiagem.

O Ghumeco chamou-a. O instincto, que nos animaes presta para mais do que o raciocinio em alguns homens, disse a Janota que era chegado o termo dos seus males. Encabritando-se, como nos tempos felizes em que a cevada a estimulava ás caminhadas que a tradição ainda hoje commemora, e despedindo dous alegres couces, prenuncio dos mais que havia despedir pelo correr dos tempos, aproximou-se do Robinson que a chamava, attrahindo-a com a engenhosa bonhomia de um missionário, e a rude franqueza do homem do mar.

Novos horisontes se vão rasgar agora para a invalida que o dono não soubera apreciar recorrendo aos segredos das hervas medicinaes, ou coníiando-a á sciencia de um ferrador, perito no tratamento das pneumonias agudas.

A primeira quarta de cevada que a Janota viu diante de si em improvisada manjadoura de vime, foi como um convite á vida alegre e folgazã de outros tempos. A palhada, adubada de semea fina, produziu na organisação robusta da Janota melhor effeito que a "Revalescière du Barry", nos temperamentos lymphaticos das filhas de um portuguez recambiado de Pernambuco pela sociabilidade dos naturaes da terra.

No fim de um mez a burra afoutou-se a poder com a albarda para experiência. Na primavera seguinte, quando o cuco serve de calendário á gente do campo, já ella carregava uma moçoila desempenada, e, soberba de carga tão formosa, galgava chotando, onde as suas congéneres se enterravam na areia, e atrevo-me a dizel-o (Deus queira que me não venham trabalhos da sinceridade) que nunca até hoje o hippodromo de Belém deu premio de consolação, ou de qualquer outro nome, a bicho capaz de se lhe avantajar na carreira.

Costa da Caparica, transporte de mercadoria pelas dunas, década de 1920.
Imagem: Espólio Agro Ferreira

Desculpem-me os sócios do "Jockey-Club" esta minha opinião, que julgo não ser isolada. Se o meu respeitável amigo o snr. conselheiro Moraes Soares, não toma a serio o apuramento da raça cavallar, receio que os burros venham a ser trunfo nas corridas. .. de cavallos.

Vamos ao caso.

Não ha obra de caridade que Deus deixe sem recompensa. A Janota veio a ser a auxiliar do Ghumeco, não o seu ganha-pão exclusivo, mas uma fatia do seu pão quotidiano. Quem hoje quer alugar a burra que os juncaes viram magra, extenuada, lazarenta, tem que metter empenhos para o conseguir. O Chumeco põe a mão na ilharga, marca-lhe o preço, e não desce d'elle nem um real.

— É para quem pôde, responde invariavelmente o dono. Isto não é animal que se fie de quem não entende da poda.

Proferimos a palavra fatal: — dono!

O dono! Mas quem é o dono? A esta interrogação ha-de responder-se em Almada ao acabarem as férias judiciaes, visto que o Roberto chama hoje seu ao que mandou deitar fora, e o Chumeco se agarra á sua propriedade, mal comparado como uma ama de leite diz ser sua a criança que os pães abandonaram. Para este caso intrincado duvidamos que possa ser applicado com bom resultado o juizo de Salomão; mas recorda-nos quasi que a propósito, a tenacidade com que um verdadeiro sábio e homem de bem — o virtuoso Condorcet — preferiu sempre a mulher do povo que o creára, á mãi desnaturada que á nascença o entregara á caridade do municipio.

Almada. Rua Direita e Egreja de S. Paulo Câmara Municipal, ed. Martins/Martins & Silva, 31, c. 1900
Imagem: Fundação Portimagem

Nós não queremos prevenir julgamentos, mas respondam-nos em consciência: não representará o Roberto n'esta historia o papel de um amante volúvel, que só deixa accender no coração os bons affectos, quando vê feliz e alegre em poder de outro a mulher que elle levou á perdição e á miséria?

Sophia Loren e Marcello Mastroianni, Ieri, Oggi, Domani, Vittorio De Sica, 1963.
Imagem: rebloggy

Não significará o Chumeco n'esta singela historia, a Providencia dos dramas chamados realistas, onde a convenção theatral manda entrar uma figura que enxuga todas as lagrimas e consola todas as afflicções?

Esta historia por ser de uma burra, não terá a sua moralidade como os apologos de Lafontaine? Nós cremos que tem.

Marquez d'Ávila e de Bolama, 1880.
Album de Glorias, Raphael Bordallo Pinheiro.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Hontem ainda, 15 de setembro de 1877, sendo pretor o snr. marquez d'Ávila e de Bolama, vimos a burra que o Chumeco conserva por em quanto em seu poder, e podemos attestar que nos olhou... como quem reconhecia em nós o apologista do seu bemfeitor. (1)


(1) Luiz Augusto Palmeirim, Galeria de figuras portuguezas,  Porto e Braga, Liv. Internacional de Ernesto Chardron, 1879  

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