Praia da Costa da Caparica, 1933. Imagem: Hemeroteca Digital |
A praia, que era raramente visitada por uns raros visitantes, bate hoje o "record", da concorrência. Aflui ali, principalmente aos domingos, uma multidão enorme de gente de todas as camadas sociais, ávida de respirar, a plenos pulmões, o ar iodado do mar.
É vê-Ia, logo de manhã cedo, a correr para os vapores quê do Terreiro do Paço e de Belém fazem carreira para a Trafaria e a assaltar as "camionettes" que dali a conduzem á "Praia do Sol".
Trafaria — Caes de embarque, ed. Alberto Aguiar, 6, década de 1930. Imagem: Delcampe |
Familias inteiras, ajoujadas com seus farneis, vão para lá passar o dia, á sombra acolhedora dos toldos e das barracas de lôna. A população fluctuante da praia, dá-lhe uma vida cheia de movimento e de colorido bizarro.
A Praia do Sol, Um trecho da praia, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, c. 1930. Imagem: Delcampe |
E toda a gente se descalça e se mete na agua, que anda no seu vai-vem constante...
As crianças, umas completamente nuas, outras com os seus mais variados fatos de banho, imprimem-lhe uma nota alegre, chapinhando na agua, á beira do mar, ou a dár cabriolas na areia.
Costa de Caparica, Praia do Sol, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, década de 1930. Imagem: Delcampe |
Dentre elas sobressai, pela sua originalidade, um miudo de 7 anos chamado Virgílio, garoto esperto. azougado, que canta o fado sem acompanhamento, demonstrando uma excelênte memoria, pois que do seu "repertorio" fazem parte nada menos de seis cantigas, com o mote e suas respectivas decimas.
O pequeno Virgilio, tisnado pelo sol da praia, alegra a "Praia do Sol" cantando, junto dos visitantes domingueiros, os seus "fadinhos", dizendo os versos numa linguagem cheia de pitoresco...
Grupo de veraneantes na Costa da Caparica, 1933. Imagem: Delcampe |
Enquanto êle canta, as irmãsitas, a Izaura, a Madalena e a ldalina, apregoam e vendem "agua fresquinha" a tostão cada copo... É uma familia de gente pobre, trabalhadora. O pai trabalha sempre que ha em quê;
Costa da Caparica, Wolfgang Sievers, 1935. Imagem: eBay |
a mãi acarreta bilhas de agua que as filhitas vendem, bem novas começando na luta pela vida, e Virgilio canta no verão, como a cigarra...
O repórter de O Século, ouvindo alguns pescadores da Costa da Caparica sobre a grave crise que atravessam, 1938. Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo |
A grande simpatia que nos inspirou o simpático miudo, inspirou-nos os seguintes versos "virgilianos" que ele aprendeu com facilidade espantosa e aos quais imprime um grande tom de convicção:
Fado do Virgílio
MOTE
Sou o rival do Menano,
Canto conto um rouxinol;
Sou pobre Caparicano
E alegro a "Praia do Sol"
Filhos de pescadores da Costa da Caparica, 1933. Imagem: Hemeroteca Digital |
GLOSAS
Apesar de ser pequeno
E viver junto do mar,
O "fadinho" sei cantar
No estilo mais ameno;
Para mim não há "empeno"
A cantá-lo não me engano,
Porque sou um lusitano,
E, por êle, apaixonado,
Por isso, a cantar o fado,
"Sou o rival do Menano".
E toda a gente se encanta
Ao ouvir a minha voz,
Por aí corre veloz
A fama desta garganta;
A mim já nada me espanta
Que, em breve, esteja no rol
Dos grandes cantores de escol
Que assombram com sua Arte,
Pois eu, a modéstia aparte,
"Canto como um rouxinol"...
Costa da Caparica, turistas posam à proa de um "Meia Lua". Imagem: Delcampe, Bosspostcard |
Embora eu ande descalço
E pobremento vestido,
Por todos sou bem-querido
Pois não tenho olhar de falso;
Da Honra sigo no encalço,
Por ser um dever humano,
O meu trabalho é insano
Para não pedir esmola,
E dizê-lo me consola:
"Sou pobre Caparicano".
Costa da Caparica, turistas, 1938. Imagem: Delcampe, Bosspostcard |
Aos domingos venho à praia
Vêr mulheres quási nuas
Que, em Lisboa, pelas ruas,
Usam mui comprida a saia,
E quando no céu espraia
Seus lindos raios, o sol,
E enquanto dura o "briol"
E fazem bem às barrigas,
Eu canto as minhas cantigas
"E alegro a "Praia do Sol".
Veraneantes na Costa da Caparica, 1938. Imagem: Dias que Voam |
Por fim, munido de alguns exemplares do "seu" fado, dos muitos que lhe démos, e que um generoso amigo nos imprimiu gratuitamente em bom papel "couchet", o Virgílio distribui-os pelos mais graduados ouvintes, fazendo uma bôa colheita de "corôas" que êle corre a levar á mãi, sem gastar, sequer, um tostão, apesar de, na praia, haver muios "caramelos" e "barquillos" que êle conhece apenas de nome e de vista...
Trafaria — Avenida Florestal, ed. Alberto Aguiar, década de 1930. Imagem: Delcampe |
Assim, espera juntar dinheiro para comprar um fato novo para ir à escola, pois, inteligente como é, depressa aprenderá a lêr, preparando-se para a vida. (1)
(1) Lima Pereira, Ilustração, n.° 14, 1933
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