domingo, 13 de março de 2016

O fado do Virgílio

A praia da Costa de Caparica, ainda ha poucos anos alcunhada de "praia selvagem", é hoje uma das mais concorridas e apreciadas praias de Portugal. Foi como que uma transformação de magica...

Praia da Costa da Caparica, 1933.
Imagem: Hemeroteca Digital

A praia, que era raramente visitada por uns raros visitantes, bate hoje o "record", da concorrência. Aflui ali, principalmente aos domingos, uma multidão enorme de gente de todas as camadas sociais, ávida de respirar, a plenos pulmões, o ar iodado do mar.

É vê-Ia, logo de manhã cedo, a correr para os vapores quê do Terreiro do Paço e de Belém fazem carreira para a Trafaria e a assaltar as "camionettes" que dali a conduzem á "Praia do Sol".

Trafaria — Caes de embarque, ed. Alberto Aguiar, 6, década de 1930.
Imagem: Delcampe

Familias inteiras, ajoujadas com seus farneis, vão para lá passar o dia, á sombra acolhedora dos toldos e das barracas de lôna. A população fluctuante da praia, dá-lhe uma vida cheia de movimento e de colorido bizarro.

A Praia do Sol, Um trecho da praia, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, c. 1930.
Imagem: Delcampe

E toda a gente se descalça e se mete na agua, que anda no seu vai-vem constante...

As crianças, umas completamente nuas, outras com os seus mais variados fatos de banho, imprimem-lhe uma nota alegre, chapinhando na agua, á beira do mar, ou a dár cabriolas na areia.

Costa de Caparica, Praia do Sol, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, década de 1930.
Imagem: Delcampe

Dentre elas sobressai, pela sua originalidade, um miudo de 7 anos chamado Virgílio, garoto esperto. azougado, que canta o fado sem acompanhamento, demonstrando uma excelênte memoria, pois que do seu "repertorio" fazem parte nada menos de seis cantigas, com o mote e suas respectivas decimas.

O pequeno Virgilio, tisnado pelo sol da praia, alegra a "Praia do Sol" cantando, junto dos visitantes domingueiros, os seus "fadinhos", dizendo os versos numa linguagem cheia de pitoresco...

Grupo de veraneantes na Costa da Caparica, 1933.
Imagem: Delcampe

Enquanto êle canta, as irmãsitas, a Izaura, a Madalena e a ldalina, apregoam e vendem "agua fresquinha" a tostão cada copo... É uma familia de gente pobre, trabalhadora. O pai trabalha sempre que ha em quê; 

Costa da Caparica, Wolfgang Sievers, 1935.
Imagem: eBay

a mãi acarreta bilhas de agua que as filhitas vendem, bem novas começando na luta pela vida, e Virgilio canta no verão, como a cigarra...

O repórter de O Século, ouvindo alguns pescadores da Costa da Caparica sobre a grave crise que atravessam, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

A grande simpatia que nos inspirou o simpático miudo, inspirou-nos os seguintes versos "virgilianos" que ele aprendeu com facilidade espantosa e aos quais imprime um grande tom de convicção:

Fado do Virgílio 

MOTE

Sou o rival do Menano, 
Canto conto um rouxinol; 
Sou pobre Caparicano 
E alegro a "Praia do Sol"

Filhos de pescadores da Costa da Caparica, 1933.
Imagem: Hemeroteca Digital

GLOSAS

Apesar de ser pequeno
E viver junto do mar, 
O "fadinho" sei cantar 
No estilo mais ameno; 
Para mim não há "empeno" 
A cantá-lo não me engano, 
Porque sou um lusitano, 
E, por êle, apaixonado, 
Por isso, a cantar o fado, 
"Sou o rival do Menano".


E toda a gente se encanta 
Ao ouvir a minha voz, 
Por aí corre veloz 
A fama desta garganta; 
A mim já nada me espanta 
Que, em breve, esteja no rol 
Dos grandes cantores de escol 
Que assombram com sua Arte, 
Pois eu, a modéstia aparte, 
"Canto como um rouxinol"...

Costa da Caparica, turistas posam à proa de um "Meia Lua".
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Embora eu ande descalço 
E pobremento vestido, 
Por todos sou bem-querido 
Pois não tenho olhar de falso; 
Da Honra sigo no encalço, 
Por ser um dever humano, 
O meu trabalho é insano 
Para não pedir esmola, 
E dizê-lo me consola: 
"Sou pobre Caparicano".

Costa da Caparica, turistas, 1938.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Aos domingos venho à praia 
Vêr mulheres quási nuas 
Que, em Lisboa, pelas ruas, 
Usam mui comprida a saia, 
E quando no céu espraia 
Seus lindos raios, o sol, 
E enquanto dura o "briol" 
E fazem bem às barrigas, 
Eu canto as minhas cantigas 
"E alegro a "Praia do Sol".

Veraneantes na Costa da Caparica, 1938.
Imagem: Dias que Voam

Por fim, munido de alguns exemplares do "seu" fado, dos muitos que lhe démos, e que um generoso amigo nos imprimiu gratuitamente em bom papel "couchet", o Virgílio distribui-os pelos mais graduados ouvintes, fazendo uma bôa colheita de "corôas" que êle corre a levar á mãi, sem gastar, sequer, um tostão, apesar de, na praia, haver muios "caramelos" e "barquillos" que êle conhece apenas de nome e de vista... 

Trafaria — Avenida Florestal, ed. Alberto Aguiar, década de 1930.
Imagem: Delcampe

Assim, espera juntar dinheiro para comprar um fato novo para ir à escola, pois, inteligente como é, depressa aprenderá a lêr, preparando-se para a vida. (1)


(1) Lima Pereira, Ilustração, n.° 14, 1933

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